(Alerta-se para o facto do texto que se segue fazer uso de recursos de estilo, tais como a ironia, o sarcasmo e a hipérbole. Talvez o autor não tenha qualidades suficientes para isso, mas, mesmo assim, quis tentar. O autor garante também que, apesar do texto que se segue é contra o aborto.)
Não me vou deter na discussão acerca da legitimidade ética do aborto, ou da possibilidade deste ser, ou não, um possível direito constitucional, nem irei tentar explicar o que realmente está em jogo na decisão que foi tomada pelo Supremo Tribunal americano. O meu ponto não é esse. Pretendo, ao invés, analisar uma perspetiva amplamente repetida e amplificada, segundo a qual, a tensão oriunda deste caso, como noutros assuntos fraturantes, é consequência de uma guerra cultural em curso.
Roe vs. Wade ou Pro-life vs. Pro-choice, nada mais são do que dois enormes falsos dilemas, porque, numa lógica evangélica, uma decisão pela liberdade de escolha só poderá ser uma decisão verdadeira se for em defesa da vida e vice-versa. Assim, o que proponho é uma visão a partir da qual o que está em jogo não é uma guerra cultural, mas a incapacidade de sairmos de uma cultura de falsificações culturais. Pro-life vs. Pro-choice são, a meu ver, as caricaturas de dois posicionamentos, mas, também, tentativas de impor e vender, no espaço público, produtos de contrafação.
Um exemplo claro desta deterioração são as reações físicas e emocionais à decisão do Supremo Tribunal. As imagens transmitidas exibem uma coloração comportamental que só consegue ter paralelo com a conduta dos adeptos na final de um mundial de futebol. Ou seja, pelo que consigo perceber, para uns e outros, o aborto é o assunto mais fundamental das suas vidas, ou, pelo menos, substancialmente mais importante que saber se é a Alemanha ou a Argentina que ganham a World Cup, mas face a uma decisão que rescreve a posição do estado americano em relação ao aborto, ambos os lados não têm receio de exibir o mesmo comportamento daqueles que, possivelmente, apelidariam de primatas, de descentrados das questões centrais ou vendidos à nova ordem mundial, por festejar ou iniciar um ciclo de depressão profundo em detrimento do resultado do já referido certame desportivo.
Um exemplo claro desta deterioração são as reações físicas e emocionais à decisão do Supremo Tribunal. As imagens transmitidas exibem uma coloração comportamental que só consegue ter paralelo com a conduta dos adeptos na final de um mundial de futebol.
Sei que o exemplo é caricato, mas daí se depreende um dos aspetos mais óbvios de que estamos diante de duas falsificações culturais. Todos fomos reduzidos a espectadores de um concerto. Podemos aplaudir, gritar, até vaiar e insultar o cantor ou a banda, mas nada podemos fazer senão permanecer reféns da lógica tribal ou do conforto induzido pelas teorias da conspiração. Adoro e odeio, amo ou detesto, são os únicos verbos admissíveis.
Por acaso, não sou particularmente apreciador de grande parte da literatura norte-americana. Autores como Faulkner, Steinbeck, Hemingway ou Melville não fazem parte da minha família literária, apesar de ser indestrutível não só a sua grandiosidade, como o seu lugar inegociável no cânone da literatura ocidental. No entanto, o mais característico dos movimentos de falsificação cultural é, precisamente, recusarem este modo de aproximação à realidade, e tentarem, ao invés, apagar, censurar e eliminar, se necessário e pertinente for, qualquer autor que não se enquadre nas suas fileiras, propondo um cânone alternativo. Numa cultura saudável, um aluno convive com várias opiniões e pontos de vista num só dia. Infelizmente muitos dos mentores de ambas as posições acham que isso é ou desnecessário ou perigoso.
Outro foco de análise é o facto de as tentativas de falsificação cultural serem extremamente suscetíveis à incoerência. Apela-se à liberdade de escolha, mas ler o Tom Sawyer talvez seja de desaconselhar porque, ao que parece, tem linguagem racista. Grita-se pela defesa da vida, a menos que ela seja oriunda de grupos minoritários ou tendencialmente excluídos. Procura-se a justiça social, mas renegando que o aborto é, estatisticamente, uma das medidas mais segregadoras de que dispomos. Invocamos inspiração religiosa e cristã, e terraplenámos tudo sem critérios evangélicos.
Creio que alguns de nós já passamos pela experiência, consciente ou inconsciente, de comprar produtos de contrafação. Nesses casos, é comum vermos o vendedor iniciar um longo e complicado equilibrismo argumentativo, inclusivamente corporal, sempre que tentamos levantar suspeitas acerca da integridade do objeto pretendido. Não acredito que, neste caso, seja diferente!
Podemos aplaudir, gritar, até vaiar e insultar o cantor ou a banda, mas nada podemos fazer senão permanecer reféns da lógica tribal ou do conforto induzido pelas teorias da conspiração. Adoro e odeio, amo ou detesto, são os únicos verbos admissíveis.
Acerca deste aspeto, Roger Scruton, um insuspeito pensador britânico – recorro a este filósofo conservador por acreditar que, neste contexto, será mais difícil ver como é que ramificações do movimento pró-vida são falsificações culturais – procedia à distinção entre mentira (lying) e falsidade (faking). De facto, uma das questões que se coloca a quem, distantemente, vê estes fenómenos é a constatação de que os protagonistas acreditam realmente nos seus próprios ideais, pelo simples facto de estes serem tão ilusórios como eles. Nenhum é um mero mentiroso, que sabe que diz o que não é verdade. Cada um é, pelo contrário, um “produto” balanceado por uma enorme comunidade de confiança, da qual ele mesmo faz parte.
Este ponto é, aliás, axial. As falsificações culturais vivem apenas de e para si mesmas. São culturas de consumo próprio; de promoção do auto-engano e da auto-fantasia, ao passo que a verdadeira cultura não é nem condescendente, nem alternativa face à realidade. O próprio Scruton, num texto chamado High Culture Fake, diria, ironicamente, que o mais vulgar neste tipo de atmosfera é o professor achar-se um génio e o que o ouve um aluno brilhante, num clima de cumplicidade, esquecendo que, ao contrário, uma cultura autêntica nos torna mais desassossegados e incompletos.
Há, no entanto, dois fatores que promoveram, de modo substancial, a disseminação das culturas falsas, e é sobre eles que me quero deter no final deste texto.
Em primeiro, temos que destacar a marginalização do conceito de verdade, em grande parte como consequência e causa do que até agora dissemos, mas não como derivação do já muito explorado relativismo cultural, com o qual todas as civilizações, em bom rigor, tiveram que lidar, e, à qual me parece difícil medir os estragos se a alternativa é o absolutismo. O fator diferenciador parece-me ser, de facto, a tentativa de ligar verdade e suspeita. Ou seja: depois do contributo, entre muitos outros, de Michael de Foucault a verdade tornou-se co-natural à ideia de poder. Como sintetiza Roger Scruton, na visão do filósofo francês “todo o discurso ganha aceitação expressando, fortalecendo e ocultando o poder daqueles que o mantêm”.
Nesta linha, a preocupação deixa de ser sentarmo-nos a usufruir da 1º Sinfonia de Malher, mas desmascarar a realidade, os conceitos, os hábitos, os modos de ver, as condições, “ir atrás”, trocando verdade por ideologia, focalizando, assim, o debate na ideia de pureza.
Nesta linha, a preocupação deixa de ser sentarmo-nos a usufruir da 1º Sinfonia de Malher, mas desmascarar a realidade, os conceitos, os hábitos, os modos de ver, as condições, “ir atrás”, trocando verdade por ideologia, focalizando, assim, o debate na ideia de pureza. Basta ouvir a Fox News ou ler o New York Times para perceber isso. Claro que posso achar isso normal no movimento pro-choice, mas dá um gosto especial perceber que certos movimentos pró-vida se deixaram levar, ironicamente, pelo mesmo modo de pensar que aqueles que estão por detrás do tão temido “marxismo cultural”. Uma coisa é verdade: se não podes vencê-los junta-te a eles.
Em segundo lugar, acredito ser necessário ressaltar que a cultura das falsificações surgiu, precisamente, do medo das falsificações. Pretendeu-se higienizar o espaço público, varrer para longe a pseudo-arte, criar espaços seguros ou novas entidades, como a apelidada “democracia não liberal” da Hungria de Viktor Orbán ou da Polónia de Andrzej Duda, o que, antes de mais, denuncia, a olhos vistos, uma evidente falta de cultura democrática. De facto, a democracia é uma entidade frágil, porque é difícil aprendermos que sermos confrontados é melhor do que cedermos ao conforto. Tornaram-se recorrentes expressões como: “se calhar é melhor não expormos as pessoas a estes conteúdos”, “talvez elas não tenham grelha de leitura para entender”, “não é mau protegê-las destes assuntos mais complicados”. Mas o pior é a condescendência e a atitude filial com que as aceitamos.
Pasolini escreveu um dia um pequeno opúsculo sobre “O fascismo dos anti-facistas”. É, no mínimo, trágico que muitos daqueles que se dizem vítimas do politicamente correto, que se imolam em caixas de comentários e grupos de WhatsApp, acabem por propor a mesma receita: uma evidente pseudodefesa da liberdade.
É também de Pier Paolo Pasolini a ideia de que “a tolerância é o aspeto mais atroz da falsa democracia”. A ela se devem a criação de guetos e de minorias aceites só se delineadas e circunscritas. Na mesma linha de pensamento o autor italiano afirmou: “Digo-te que é muito mais humilhante ser ‘tolerado’ do que ser ‘proibido’ e que a permissividade é a pior de todas as formas de repressão”. Talvez valha a pena pensar nisto.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.