Ao que parece, nós, portugueses, somos (ou estamos) fracos em “práticas culturais”. Diz o recente relatório de Síntese dos resultados do inquérito encomendado pela Fundação Calouste Gulbenkian que há grandes assimetrias no que respeita aos nossos hábitos culturais: pessoas com maior formação académica e estabilidade financeira tendem a ler mais, a frequentar museus, monumentos e galerias de arte, a ir ao cinema e a espetáculos, ao passo que as restantes, com menores recursos, recorrem sobretudo à televisão (idosos) ou às redes sociais pelo telemóvel (jovens).
Em dias mais filosóficos, talvez estes resultados me fizessem viajar pela “ideia de cultura”. Houve quem tivesse sublinhado o aspeto patrimonial e artístico deste conceito para apontar a necessidade de contactar e conhecer as “grandes obras” (isto é, “cultivar-se”). Outros focaram a sua dimensão intelectual para afirmar o imperativo de “saber” como forma de compreender o mundo histórico e físico-químico. Para alguns, a cultura, na sua essência, é uma atividade absolutamente “gratuita” e “inútil”, do saber pelo saber, ou da arte pela arte. Para estes, ela não serve para produzir coisas (entenda-se, “vender”) mas para habitar o mundo (entenda-se, “ser”). Claro que noutros dias, um pouco cínicos, talvez especulasse sobre se as universidades não são também fábricas de diplomas, ou se as galerias e museus serão realmente independentes e alheios de mercados (nada gratuitos), ou até se algumas imagens de cultura não são, no fundo, uma perpetuação do preconceito que continua a separar certas elites nostálgicas dos gostos populares. Nada disto, importa sublinhar, é sugerido pelo belíssimo inquérito agora publicado: tratam-se apenas de considerações feitas em voz alta.
Mas, para falar abertamente: será que nos deveríamos importar com tais resultados? A minha resposta sintética é “sim, mas”. Subjacente às razões que vou apresentar em seguida está a seguinte tese: fundamentalmente, a cultura serve para nos ajudar a sermos mais humanos.
1. Cultura como olhar inteligente sobre a realidade
“Compreender a realidade” conta-se entre os desafios mais exigentes (e inacabados) com que nos debatemos ao longo da vida. Ora, essa é, precisamente, a “matéria” de que é feita grande parte da cultura. Evidentemente, este processo faz-se em diferentes níveis complementares que se enriquecem e, por vezes, se corrigem reciprocamente. As relações interpessoais (lúdicas, afetivas, existenciais) são lugares de compreensão e construção da nossa humanidade: tanto da arte (tradicional e de autor) e sabedoria encontra aqui o seu berço. Ou seja, as relações quotidianas e próximas fazem cultura, humanizam-nos. Do mesmo modo, as ciências introduzem um olhar analítico sobre o mundo: são, por isso, preciosas. Os tempos recentes de pandemia vieram mostrar a urgência de preservar e promover um e outro eixos da cultura: sem relações e sem arte ficamos doentes; mas sem ciência e informação credível, também. A falta de práticas culturais faz-nos mal à saúde, literalmente.
2. Cultura como expressão da curiosidade
Há um lado descritivo e analítico no exercício de compreensão da realidade; mas há igualmente um lado inventivo, de exploração e de criação, seja ele de métodos, de teorias ou de linguagens de expressão. Tanto cientistas quanto artistas são investigadores do mundo físico e humano, literal e metaforicamente. Seria caso para perguntar se os “produtos culturais” mais consumidos atualmente são os que melhor estimulam essa curiosidade investigadora e criativa. A avaliar pelos blockbusters atuais, estamos mais na era dos remakes do que dos grandes rasgos de criatividade; e nem o Instagram nem o Tik Tok parecem ser espaços de enorme inovação ou reflexão artística. Procuramos “produtos” para nos entretermos; mas será que isso é suficiente?
3. Cultura como exercício de conversação
No coração da atividade cultural (como da nossa humanidade) está a necessidade e o desejo de conversação. Queremos compreender o mundo e criar novas formas de expressão porque somos curiosos, é verdade, mas também porque somos conversadores. Conhecimento do mundo e da técnica, expressão artística e relações interpessoais formam o tecido da cultura. Contudo, até que ponto ciência e arte entram nas nossas conversas, hoje em dia? E, se não entram, porquê? Uns dirão: dá muito trabalho, é por isso que ninguém se aproxima (por preguiça). Outros dirão: parece que “falam para dentro”, são pouco claros e arrogantes. Também se podia acusar o ensino: transmitem-se conteúdos, mas mata-se a curiosidade. Quem sabe? Entretanto, de que vamos nós conversando?
4. Ecologia da cultura
Com a encíclica Laudato Si, o Papa Francisco mostrou que o termo “ecologia” vai bem além do simples “cuidado com a reciclagem”: por detrás dele está uma consciência do alcance global do nosso modo de viver. Somos todos vizinhos de uma casa comum: o que um faz, afeta tudo e todos. Usando este princípio, poderíamos falar de uma ecologia da cultura. A cultura faz parte de um ecossistema vasto que engloba criadores/ investigadores, de um lado, e espectadores/ consumidores, do outro. Resumidamente, o desinvestimento nas práticas culturais acabará por atingir negativamente todo o conjunto da sociedade: uns, porque ficam sem financiamento e sem público; outros, porque perdem artistas/ investigadores e conteúdos.
Diante de tais resultados, fica no ar a provocação do Papa Francisco: «a graça pressupõe a cultura». Que desafios se levantam, hoje, para a sociedade portuguesa? É certamente bastante redutor (e pedante) pensar que a cultura se limita aos livros e afins: o que se passa em casa e na rua, o que nos faz rir e chorar, o popular e quotidiano também é (e faz) cultura. Porém, é urgente enriquecer as nossas conversas e modos de entretenimento, sob pena de achatarmos a nossa compreensão da vida e do mundo, mas também as nossas relações mais próximas. Dizia o filósofo Wittgenstein que os limites da nossa linguagem marcam as fronteiras do nosso mundo. Precisamente, a cultura é o baú onde a linguagem se reinventa e o mundo aumenta. Agora, como fazê-lo?
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.