Posso comprar-te com nada!

Quando nos dispomos a olhar nos olhos, quando nos dispomos a um encontro profundo com o outro e quando nos entregamos de coração, o nada é o milagre a acontecer.

Talvez o fim do verão me traga este tom um tanto ou quanto nostálgico, este tom talvez desejoso de um sol que se prolongue mais um bocadinho. Mas tinha eu uns 13 ou 14 anos quando de casa da minha avó materna trouxe um livro cujo nome só por si faz despertar qualquer coisa cá dentro: O Coração da Primavera, de Rabindranath Tagore. O livro, até hoje, tem o poema da minha vida. Talvez seja o desejo de liberdade que move a humanidade.

Neste poema fala o eu, porque pode ser sobre mim ou sobre qualquer um de nós e porque o eu nos faz protagonistas do caminho. Chama-se “O Último Negócio” e nele sigo a caminhar até que solto um forte grito: “Vendo-me!”. Vem o rei, vem o velho e até uma rapariga.

“Gritei:
— Vendo-me!”

Os três cruzam-se comigo e todos garantem que me podem comprar. O rei diz “sou poderoso, posso comprar-te”, o velho, com “um saco de oiro às costas”, diz “posso comprar-te” e a rapariga “compro-te com o meu sorriso.”

Já não sei quantas vezes li este poema, mas parece que em todas há novidade. Esta última vez, tive a oportunidade de o reler com a Fratelli Tutti na memória e a ecoarem em mim os perigos da indiferença, as oportunidades de alegria que desperdiçamos, os beijos que não damos.

Serão o poder, a riqueza e o supérfluo diferentes formas de indiferença? A cultura da indiferença rouba-nos a felicidade. Ficamos cegos, surdos e mudos. Na encíclica lemos “reina uma indiferença acomodada, fria e globalizada, filha duma profunda desilusão que se esconde por detrás desta ilusão enganadora: considerar que podemos ser omnipotentes e esquecer que nos encontramos todos no mesmo barco.” Esta “perigosa indiferença” é o que nos faz achar que podemos comprar tudo. Tal como o rei, o velho e a rapariga acharam.

Mas o poema continua. Nem com poder, nem com dinheiro, nem com um sorriso: seguiram o rei, o velho e a rapariga de mãos vazias.

“Mas de nada lhe serviu o seu poder
e voltou sem mim no seu carro.”

Até que há um menino que, algures na praia, tem a ousadia de me dizer que é capaz de me comprar com “nada”. Como assim nada? Comprar-me com nada? É a resposta à indiferença. Quando nos dispomos a olhar nos olhos, quando nos dispomos a um encontro profundo com o outro e quando nos entregamos de coração, o nada é o milagre a acontecer.

“Um menino estava sentado na praia
brincando com as conchas.
Levantou a cabeça
e, como se me conhecesse, disse:
— Posso comprar-te com nada.
Desde que fiz este negócio a brincar,
sou livre.”

Talvez seja mesmo o desejo e a sede de liberdade que move a humanidade. É que depois deste “negócio a brincar, sou livre”. Ganhei a liberdade quando me entreguei por nada, quando confiei, quando me deixei ser profundamente amada, quando recusei a indiferença, quando com nada fui, também, capaz de oferecer a liberdade e a vida aos outros. Sou livre!

Deixem-me voltar ao título do livro que a minha avó Arlette me deu e onde consta este meu poema favorito: O Coração da Primavera. Parece que quando o pronuncio não me cabe na boca. Há qualquer coisa nele a explodir. De belo e de revelador. O coração da Primavera é um coração que vive inquieto e com verdade? Um coração em flor? É um milagre de alegria que Deus pôs nas nossas mãos.

Poema completo:
O Último Negócio

Certa manhã
ia eu pelo caminho pedregoso,
quando, de espada desembainhada,
chegou o Rei no seu carro.
Gritei:
— Vendo-me!
O Rei tomou-me pela mão e disse:
— Sou poderoso, posso comprar-te.
Mas de nada lhe serviu o seu poder
e voltou sem mim no seu carro.

As casas estavam fechadas
ao sol do meio dia,
e eu vagueava pelo beco tortuoso
quando um velho
com um saco de oiro às costas
me saiu ao encontro.
Hesitou um momento, e disse:
— Posso comprar-te.
Uma a uma contou as suas moedas.
Mas eu voltei-lhe as costas
e fui-me embora.

Anoitecia e a sebe do jardim
estava toda florida.
Uma gentil rapariga
apareceu diante de mim, e disse:
— Compro-te com o meu sorriso.
Mas o sorriso empalideceu
e apagou-se nas suas lágrimas.
E regressou outra vez à sombra,
sozinha.

O sol faiscava na areia
e as ondas do mar
quebravam-se caprichosamente.
Um menino estava sentado na praia
brincando com as conchas.
Levantou a cabeça
e, como se me conhecesse, disse:
— Posso comprar-te com nada.
Desde que fiz este negócio a brincar,
sou livre.

Rabindranath Tagore, in “O Coração da Primavera”

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.