Novembro de 2018 convida-nos a fazer memória de um dos eventos mais trágicos do século passado, e festejar, assim, os cem anos do seu término. Refiro-me à grande guerra de 1914-1918, que envolveu mais de trinta países, sendo, por isso, a primeira a atingir uma dimensão à escala mundial. Até mesmo Portugal, aqui no canto da Europa, participou ativamente nesta guerra, com enormes custos em vidas humanas e recursos económicos.
Como poderemos nós, europeus, fazer memória desta guerra cruenta e festejar o seu armistício? Será assim tão importante não deixar que este centenário passe despercebido? Talvez, recordar o horror da guerra poderá ajudar-nos a progredir numa cultura de paz. Regressar às causas do trágico conflito, e perceber até que ponto o progresso científico e tecnológico pode ser destrutivo, mostra-nos como o projeto europeu deve assumir valores essenciais para que haja futuro.
Como poderemos nós, europeus, fazer memória desta guerra cruenta e festejar o seu armistício? Será assim tão importante não deixar que este centenário passe despercebido?
O assassinato de Francisco Fernando em Sarajevo, perpetrado, ao que parece, por um nacionalista sérvio em 1914, foi apenas a ‘gota de água’ que desencadeou o conflito entre nações há já muito tempo em constante tensão e crescente rivalidade. À época, a generalidade da opinião pública esperava que o conflito fosse breve e que não tivesse grandes impactos na vida do comum dos mortais. Foi, aliás, com o acordo da maioria dessa mesma opinião pública que os Estados europeus declararam guerra uns contra os outros, seguindo as suas alianças políticas e os nacionalismos então em ascensão. Todos esperavam, pelo menos no início, sair fácil e rapidamente vencedores. E a voz de Bento XV, o Papa da altura, foi uma exceção ao opor-se ao conflito no seu veemente apelo à paz.
Durante a guerra, a realidade vivida, não só pelos soldados nas trincheiras, mas também pelas populações civis de toda a Europa, foi bem diferente da que se esperava. Com o progresso científico, tecnológico e económico, o conflito foi moroso, extremamente destrutivo e nefasto; a guerra foi-se prolongando assim, sem grandes vitórias de parte a parte. Depois de terminado, o conflito deixou-nos uma Europa destruída e endividada, facilitando o desencadear das crises económicas que se seguiram.
Agora – três gerações depois de um conflito que, hoje, nos parece ter sido absurdo –, o tempo convida-nos a celebrar o centenário do armistício de 1918. Não se trata apenas de festejar o fim da primeira grande guerra. Recordar a história, também serve para evitar os erros passados. Deixar que o passado nos fale pode ajudar-nos a perceber porque a paz duradoura em solo europeu, que tantas figuras proeminentes desejaram – de Kant a Schuman –, não chegou a concretizar-se.
Não nos cabe a nós, certamente, o papel de delinear grandes decisões geoestratégicas a nível político. Essas decisões são próprias dos governos e das instituições europeias. Contudo, enquanto cidadãos, podemos viver, desenvolver e fomentar uma cultura de paz, sobretudo hoje, nesta Europa onde os nacionalismos parecerem renascer ainda que sob outras formas.
Não nos cabe a nós, certamente, o papel de delinear grandes decisões geoestratégicas a nível político. Essas decisões são próprias dos governos e das instituições europeias. Contudo, enquanto cidadãos, podemos viver, desenvolver e fomentar uma cultura de paz, sobretudo hoje, nesta Europa onde os nacionalismos parecerem renascer ainda que sob outras formas.
É importante, neste sentido, tentar compreender as razões da guerra para, assim, celebrar e viver a paz que se tem construído em solo europeu. Festejar, também, o sucesso, neste âmbito, da União Europeia que tem conseguido manter uma paz sustentável no continente, durante o período mais longo de toda a sua história. Foi por isso mesmo que o Prémio Nobel da Paz lhe foi atribuído, precisamente há seis anos, reconhecendo o mérito de ter alcançado o que a Sociedade das Nacões de então, e tantas outras instituições do passado, desejaram mas revelaram ser incapazes de o realizar.
A História mostra-nos que a guerra consistiu, entre outras coisas, no culminar de uma cultura de confronto que se vai alimentando de políticas e desejos expansionistas e protecionistas. Foi com o acentuar dos sentimentos nacionalistas que o outro, o diferente, começou a ser encarado como um inimigo.
Para que a paz duradoura se construa de forma sustentável não é preciso eliminar as diferenças culturais de uma Europa rica na pluralidade dos seus povos, nações e tradições. Mas é preciso reconhecer os perigos que os crescentes nacionalismos, por vezes exacerbados, podem constituir. Se encararmos a existência e a prosperidade do outro como sinónimo do nosso próprio empobrecimento, podemos comprometer a paz duradoura e o projeto de uma saudável união europeia, estimulando dessa forma o confronto e a violência, que sempre conduziram à ruína de todos.
As celebrações do centenário do armistício revelam uma outra cultura que não a do confronto, mas a do diálogo, do encontro; cultura esta que, segundo o Papa Francisco, é necessária para a construção do futuro.
Não nos esqueçamos de que o maior período de paz da história da Europa começou com a fundação das Comunidades Europeias. Não abandonemos, portanto, o projeto europeu.
Não nos esqueçamos de que o maior período de paz da história da Europa começou com a fundação das Comunidades Europeias. Não abandonemos, portanto, o projeto europeu. Ao recordar o fim da primeira grande guerra, podemos estender a todos os povos europeus – todos os outros – os quatro verbos que o Papa Francisco pediu que se aplicassem aos migrantes e refugiados: “acolher, proteger, promover e integrar.” Talvez possamos viver dessa forma uma cultura de paz que, sem exigir o sacrifício do outro, do diferente, nos permita crescer em conjunto.
No passado domingo, 11 de novembro, data em que se assinalava o centenário do armistício, o Papa, antes da tradicional oração do Angelus, chamou a atenção para os perigos da “cultura da guerra”. Referindo-se ao “emblemático gesto” de são Martinho de Tours – cuja memória litúrgica coincide com o dia do armistício –, Francisco mostrou como a partilha solidária e gratuita dos bens próprios, à imagem do santo que rompeu o seu manto para vestir o seu próximo, permite a construção da paz.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.