5 de maio de 1818: eis o dia que viu Karl Marx nascer numa pequena cidade prussiana, de nome Trier. Poucos autores tiveram um impacto tão profundo e duradouro no desenvolvimento da política internacional como Marx. Por isso, é natural que muito se tenha escrito ultimamente a propósito deste segundo centenário do seu nascimento. O fascínio pela sua obra, o debate aceso em torno da sua herança e o vincar de posições continua a suscitar entusiasmo e polémica, mesmo agora, quando já passaram duzentos anos após o seu nascimento.
Por um lado, há quem veja no “espectro do comunismo” uma ameaça à liberdade política e económica própria do ocidente contemporâneo: estes sentem a necessidade de frisar, neste bicentenário, que “nem todos somos marxistas”. Mas há também, por outro lado, quem nutra simpatia pelos ideais comunistas, ideais ainda por alcançar. Enquanto os primeiros tendem a enfatizar os aspectos negativos da herança marxista, sobretudo no que diz respeito às atrocidades cometidas pelos regimes que se arrogavam seguir Marx, os segundos focalizam-se, sobretudo, na denúncia das injustiças e incoerências do capitalismo (ou sistema económico liberal – como lhe quiserem chamar), a partir da génese de novos conceitos filosófico-económicos que o génio de Marx permitiu teorizar.
Os dois posicionamentos talvez corroborem o que Jean-Paul Sartre terá dito sobre o marxismo, elevando-o ao estatuto de “horizonte inultrapassável” do século XX. Além disso, devemos ter também em conta as novas interpretações da obra de Marx, distintas do “socialismo científico”, a partir de algumas obras, como os Manuscritos de 1844 e A ideologia alemã, vindas a público apenas em 1932, já quando o marxismo-leninista ortodoxo prosperava pelo mundo como interpretação ‘oficial’ (ver, por exemplo, o Marx de Michel Henry (1976) ou Spectres de Marx de Jacques Derrida (1993)).
Acho que não devo, como cristão, reduzir a análise às questões político-económicas, procurando apenas verificar se o marxismo ortodoxo é, ou não, fiel à obra de Marx, se as suas previsões e teorias são ou não consistentes ou se o saldo da sua herança é mais negativo que positivo. Talvez fosse mais fácil reduzir o meu discurso aos milhões de vítimas mortais dos regimes comunistas e à miséria gerada pelo sistema económico obsoleto de certos países marcados por uma constituição marxista. No entanto, mesmo apesar dessas realidades não poderem ser esquecidas, parece-me que tal discurso dificilmente faria justiça a Karl Marx e à sua vasta obra, sobretudo no contexto do bicentenário do seu nascimento. Realmente, além do facto de ser impossível, ao filósofo alemão, pronunciar-se sobre a apropriação do seu pensamento por tais regimes, a herança da sua obra não se reduz à prática do marxismo-leninista.
Creio que devo, enquanto católico, enfrentar a crítica que Marx dirigiu contra a religião, uma crítica que, aliás, não tem sido muito referida em tudo o que se tem dito durante este ano do bicentenário do seu nascimento. Como poderá um cristão celebrar tal bicentenário, um cristão inserido e implicado no mundo de hoje, um mundo povoado de crises sociais, económicas e ambientais; e um mundo cada vez mais secularizado?
A partir de duas das frases mais citadas de Marx, podemos compreender o problema que ele atribuía à religião: “os filósofos limitaram-se a interpretar o mundo de diversas maneiras; o que importa é transformá-lo” (Teses sobre Feuerbach, 1845); e “a religião é o soluço da criatura oprimida (…) é o ópio do povo” (Introdução à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, 1843). Para o marxismo tradicional, e na sua interpretação destas passagens, a religião, qual ideologia, funciona como uma espécie de droga, usada sobretudo pelas classes dominantes, por forma a anestesiar os trabalhadores oprimidos, aqui e agora, com uma esperança numa vida situada para além deste mundo e desta vida. Assim anestesiados, ou alienados, os trabalhadores, em vez de se empenharem pelo progresso da revolução, aceitariam todas as injustiças impostas pelos detentores do poder.
A religião, interpretada (e vivida) deste modo, não se preocuparia com a vida presente, pois adiava toda a esperança para uma suposta vida futura, completamente separada e fora deste mundo. Na óptica marxista, para que os homens e as mulheres se possam preocupar com a transformação do mundo atual, diminuindo progressivamente as injustiças sociais e económicas, seria necessário eliminar essa (falsa) esperança religiosa numa vida futura. Sem a religião – ou melhor, sem essa religiosidade –, estaríamos finalmente livres para nos empenharmos na resolução das injustiças, aqui e agora, em vez de deixarmos a redenção para um além futuro.
Parece-me que esta crítica deve ser levada a sério, não só pelos crentes das várias religiões, mas também pelos que acreditam nos ideais comunistas. Se existe uma maneira de viver a religião que conduz à resignação perante as injustiças do mundo presente, também é verdade que os regimes marxistas acabaram por sacrificar o presente de muitas vidas em prol de um comunismo que, apesar de intramundano, se realizaria apenas no fim da História.
Além disso, creio que neste contexto se deve ter também em conta a preocupação social que se espelha no magistério dos pontificados mais recentes. Começando pelo final do século XIX, mais precisamente em 1891, cerca de dez anos após a morte de Marx, temos a publicação da encíclica Rerum novarum. Com a publicação deste documento, o Papa Leão XIII deu início a uma nova etapa na “doutrina social da Igreja”, uma doutrina que se desenvolveu consideravelmente no decurso dos pontificados posteriores, chegando a abordar outras questões para além do problema visado por Leão XIII: as condições de trabalho dos assalariados.
Das inúmeras encíclicas dedicadas à questão social, podemos destacar as seguintes: Pacem in terris (1963), na qual, perante a crise dos mísseis cubanos, o Papa João XXIII apelou ao desarmamento (§113 PC); Populorum progressio (1967) de Paulo VI, onde se denuncia o desequilíbrio económico entre os países desenvolvidos e os países subdesenvolvidos ou em vias de desenvolvimento (§8 PP); Laborem exercens (1981) de João Paulo II, onde, para além da questão dos direitos dos trabalhadores, se refere também “o problema da emigração” (§23 LE); Caritas in veritate (2009), onde Bento XVI apela a uma “reforma” tanto da Organização mundial das Nações Unidas, como da “arquitetura económica e financeira internacional” (§67 CV); e Laudato Si (2015) do Papa Francisco, onde a doutrina social da Igreja se atualiza ao abordar a crise ecológica que ameaça o mundo contemporâneo.
Mesmo descontando o pensamento teológico que se produziu ao longo do século XX, nomeadamente no que diz respeito às diversas teologias da libertação que procuraram criticar o sistema económico vigente e encontrar soluções para os problemas sociais do seu tempo (ver, por exemplo, os trabalhos de Gustavo Gutiérrez ou de Jon Sobrino), o vasto número de encíclicas papais dedicadas às questões sociais, assim como a pluralidade dos problemas tratados, testemunha a preocupação da Igreja pelos problemas do nosso mundo concreto, do aqui e agora. A tudo isso acresce a ação da diplomacia vaticana que tem cooperado na resolução de conflitos, seja em Cuba ou em Israel, contribuindo para a construção da paz: uma paz que se deve realizar no nosso mundo presente, evidentemente. Com a mesma ambição, numerosos são os cristãos que se empenham, em diversas instituições, na resolução de problemas muito concretos, que vão desde o apoio a pessoas sem abrigo até à integração dos imigrantes.
Há também quem veja nesta preocupação pelo social um perigo para a fé: para alguns crentes, este modo de estar da parte da Igreja e dos seus membros corre o risco de reduzir a fé a um humanismo e a Igreja a uma ONG. Nesse contexto, é interessante notar como existe um ponto de contato entre esta crítica interna à Igreja e a crítica marxista contra a religião em geral: para ambos, a fé deve debruçar-se sobre a realidade que está para além deste mundo. E é verdade que a fé e a esperança cristãs não se reduzem à plena construção do Reino de Deus neste mundo limitado e finito.
Contudo, à imagem dos primeiros cristãos, a fé torna-nos responsáveis por praticar os valores evangélicos no aqui e agora, onde nos situamos. Movidos pela sua fé, os primeiros cristãos partilhavam os seus bens uns com os outros. Segundo a descrição do estilo de vida das primeiras comunidades cristãs, que surge nos Atos dos apóstolos, “os fiéis estavam todos unidos e possuíam tudo em comum; vendiam bens e posses, e distribuíam tudo segundo a necessidade de cada um.” (At 2, 44-45). É difícil escutar esta passagem bíblica sem pressentir uma forte semelhança com um dos princípios mais popularizados de Marx: “de cada um segundo as suas capacidades, a cada um segundo as suas necessidades” (Crítica ao Programa de Gotha, 1875) – a este propósito é interessante verificar como Karl Marx conhecia bem os textos bíblicos, nomeadamente o Novo Testamento (ver Marx y la Biblia (1971) de José Miranda e Adventures in Marxism (2001) de Marshall Berman).
Creio ser esse espírito de partilha, à imagem da fracção do pão eucarístico, que move os Papas e tantos outros cristãos a se empenharem ardentemente pela justiça e pela transformação deste mundo. Sempre animados pela esperança cristã segundo a qual o Bem vencerá, a fé estimula-nos a cooperar nessa transformação – podemos dizer: ‘conversão’ – do mundo, através da oração, da participação em organizações humanitárias e do diálogo com quem não se encontra na nossa esfera eclesial. A crítica de Marx à religião estimula-nos a testemunhar cada vez mais efetivamente este zelo pela construção de um mundo mais justo: um zelo que não é exclusivo dos marxistas, pois é também cristão.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.