Peregrinar na planície

Só quando voltei a colocar a mochila, já na cidade a que regressava, e embati no meu quotidiano em concreto, me apercebi que peregrinando na planície afinal também tinha subido à montanha.

Regressei há alguns dias de um tempo de peregrinação a Santiago de Compostela. Tratava-se de um sonho antigo. Muitas vezes planeado e outras tantas vezes adiado pelas inúmeras contingências e conflitos de agenda com que a vida, hoje em dia, sempre nos desafia. Sonho antigo, mas firme. De tal modo queria chegar pela primeira vez a Santiago a pé e como peregrina, que várias vezes “obriguei” a família e amigos a desviar trajeto de férias para evitar uma entrada na cidade como simples turista ou de carro.

E assim, desta vez, sem grande planeamento ou preparação, decidi finalmente lançar-me e partir. Sozinha e a pé. Foram oito dias de peregrinação seguindo o chamado “Caminho Português” desde Ponte de Lima até à Praça do Obradoiro – ponto de chegada, ao longo de séculos, dos peregrinos do Caminho de Santiago face à magnífica catedral.

Foram dias de silêncio, oração, passos e de profundo encontro com Deus, com a Casa Comum e comigo mesma. Mas não esperem deste artigo nenhum momento de revelação mística ou uma epifania! Foi uma peregrinação sem êxtase, sem grandes conflitos interiores, sem inesperados deslumbramentos/assombros, sem bolhas, sem chuvadas, sem dores de costas. O tempo manteve-se ameno, sem extremos de frio ou de calor, e não tive situações imprevistas ou aventuras que possa relatar. Também fisicamente nunca me senti no limite – as etapas que fiz eram curtas, sem grandes declives e o caminho está marcado de forma tão clara e frequente que é praticamente impossível perder-se.

Fui assim rezando e tentando discernir que aspetos e aprendizagens da experiência de peregrinação têm potencial de replicação ou são transferíveis para o nosso quotidiano.

Enquanto novata no Caminho (é assim que é chamado entre os peregrinos e caminhantes – simplesmente “o Caminho”) fui-me deixando surpreender pelo que encontrava a cada dia. Uma das maiores surpresas que tive foi o facto de o caminho ser pouco isolado e, pelo contrário, cruzar de forma regular povoações, aldeias, cidades. Assim, ao longo dos dias, cruzava-se a minha peregrinação “especial” (esse tempo tão único e singular pelo qual tanto tinha aspirado) com a peregrinação “diária” de tanta gente. De manhã cruzava-me com o sair da padaria; as idas para o trabalho; as deslocações de carros; o agricultor na sua horta; as crianças no recreio da escola. Ao final do dia via os avós a trazer as crianças da escola; as idas ao supermercado; alguém a despejar o lixo ou ainda o convívio nas esplanadas que caracteriza os finais de tarde em Espanha. Habituada a caminhar na montanha, longe de qualquer sinal de civilização e com paisagens deslumbrantes, nos primeiros dias senti-me quase incomodada com esta imposição à minha peregrinação “especial” do quotidiano dos outros. Eu queria subir à montanha, tal como Jesus, para aí ficar sozinha e em silêncio orar. E aqui estava eu na planície… e a cruzar pessoas que continuavam na sua vida…

Mas o que inicialmente foi percecionado como uma limitação do percurso escolhido, rapidamente se tornou riqueza e uma fonte de oração. Ajudou-me também o único livro que tinha levado na mochila intitulado – Santo Inácio – Nunca Só (mas isso daria quase outro artigo!). Fui assim rezando e tentando discernir que aspetos e aprendizagens da experiência de peregrinação têm potencial de replicação ou são transferíveis para o nosso quotidiano. Entre muitos outros, que fui rabiscando ao longo dos dias no meu caderno, aqui ficam alguns pontos sobre o peregrinar no quotidiano:

Presente ao presente – Quando se peregrina a pé e sozinho – o presente impõe-se. É simultaneamente muito simples, reduzido a decisões básicas, mas também muito premente (tenho fome? paro agora para descansar? quantos quilómetros ainda tenho pela frente? onde vou dormir hoje?). Deixamos o famoso multitasking ou a avalanche de estímulos das redes sociais para nos concentrarmos em tarefas simples, que não se sobrepõem e são realizadas uma de cada vez. Quantos dias no nosso quotidiano se sucedem e passam numa tal aceleração que, sendo nós sujeitos desses dias e tendo-os vivido, não estivemos efetivamente presentes? A peregrinação ensina-nos a tomar consciência, a cair na conta do nosso dia, do que nos rodeia, da nossa vida, da nossa realidade. A saber estar presente no presente que nos é oferecido.

A peregrinação ensina-nos a tomar consciência, a cair na conta do nosso dia, do que nos rodeia, da nossa vida, da nossa realidade. A saber estar presente no presente que nos é oferecido.

Abertura aos encontros – Parti com o firme propósito de estar em silêncio e por isso nos primeiros dias evitei qualquer contacto (por vezes quase de forma ríspida!). Mas, à medida que avançava no Caminho, percebia que de facto, embora em silêncio, não estava sozinha. Fazia parte de uma multidão de peregrinos que, ao longo de séculos, têm feito este trajeto. Mas não só. Também hoje pessoas concretas, que ao longo das etapas, ia cruzando e partilhavam sorrisos, o famoso voto de “Bom Caminho” e algumas palavras. E assim, sem perder o tempo de silêncio, abri-me mais aos encontros, a pequenas conversas partilhadas enquanto se caminha. Quantos dias no nosso quotidiano se sucedem sem que haja tempo para encontro com quem está próximo? E quantas vezes os nossos dias não deixam espaço, físico ou mental, para encontros inesperados? “Porque vieste fazer o Caminho? Porque estás aqui? ” – uma pergunta que nos abre ao inesperado, à riqueza e à singularidade de cada vida.

Caminho convertido em oração – Embora tivesse estruturado os meus dias com tempos formais dedicados à oração (quer em momentos de descanso na natureza, quer nas igrejas e capelas que ia encontrando abertas, quer ainda enquanto caminhava), à medida que os dias foram passado essas fronteiras e limites do que “era oração” e do que “não era oração” foram-se diluindo. Estava a caminhar por entre árvores. Isso era rezar? Ouvia o som dos passos sobre a terra ou o asfalto. Era ainda tempo de oração? O diálogo com Deus e a Sua presença integraram de forma plena o caminhar, o respirar, o avançar. Quantas vezes no nosso quotidiano “compartimentalizamos” a nossa oração em espaço estanques que não comunicam com a vida? É verdade que o ato de caminhar é de uma beleza e profundidade tal que se concilia de forma particular, quase natural, com a oração. Mas a peregrinação ensina-nos que não há barreiras para a oração e que ela pode atravessar toda a nossa vida e todos os momentos do nosso quotidiano.

Mas a peregrinação ensina-nos que não há barreiras para a oração e que ela pode atravessar toda a nossa vida e todos os momentos do nosso quotidiano.

A ilusão da chegada e a certeza do percurso – A chegada a Santiago foi um misto de emoções. Alegria, paz, realização, propósito, mas também uma certa nostalgia, aspiração a mais… A peregrinação passa sempre por chegar a algum sítio. Há uma meta final, há etapas, há metas diárias. Essas etapas e metas estruturam os dias, ajudam a avançar, fazem-nos olhar mais além e colocam-se em movimento. Mas no final de cada etapa, e tendo chegado ao destino previsto para esse dia, o que efetivamente conta e permanece é o percurso, o caminho. Quantas vezes no nosso quotidiano o resultado é mais importante que o processo? Quantas vezes a meta subalterniza a qualidade do caminho? Na peregrinação a chegada ao destino remete-nos sempre para uma nova partida, um novo destino, um novo percurso. Pois efetivamente somos sempre peregrinos.

Chegada a Santiago, também eu, como todos os peregrinos, tive que regressar ao ponto de partida – a casa. A peregrinação tinha corrido bem, de acordo com o planeado, sem grandes imprevistos. Uma peregrinação na planície, sem grandes desníveis físicos ou espirituais, sem subidas íngremes ou descidas acentuadas. Sem cumes de onde avistar horizontes longínquos. Uma peregrinação na planície e através dos quotidianos.

Disto estava eu convencida até descer do autocarro na estação de Sete Rios. Só quando voltei a colocar a mochila, já na cidade a que regressava, e embati no meu quotidiano em concreto, me apercebi que peregrinando na planície afinal também tinha subido à montanha.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.