Perdoar ao tempo

Não nos queixemos do tempo (ou da falta dele). Vamos amá-lo e perdoar-lhe!

Estou na Ilha de Santo Antão há sete dias, mas parecem setenta vezes sete. Por alguma razão que me escapa o tempo aqui foi perdoado. Dá a sensação de que segue mais devagar, agradecido, contemplativo e denso, sem pressas. Nesta ilha as cidades são trincheiras estrategicamente montadas nos quatrocentos ou quinhentos metros possíveis entre o mar e as montanhas que se erguem abruptamente, numa verticalidade absoluta e fascinante, nalguns lugares quase aterradora. O horizonte da vida é, para alguns dos que aqui vivem, apenas a subsistência. Aos lugares mais pequenos e mais altos do interior só se chega serpenteando rampas ou degraus, a pé e devagar, porque as subidas são ingremes e ‘ninguém corre atrás de nós’. Quando chegarmos chegamos! Quando começarmos começamos! Quando acabar acaba! Aqui as horas do relógio são indicativas, mas não somos escravos delas.

A nossa relação com o tempo é, com frequência, conflituosa, confusa, quase bipolar. Queremos mais tempo e queixamo-nos da falta dele, mas, às vezes, quanto maior a abundância, maior o desperdício.  Estamos sempre a inventar formas de ocupar o tempo, por vezes inutilmente. Não só o usamos, como abusamos dele.

A maioria de nós, logo de manhã, arma-se até aos dentes para travar uma inglória batalha contra o tempo. Hoje, substituímos as tradicionais armas de guerra por cremes com agentes antienvelhecimento, por sumos com propriedades milagrosas de rejuvenescimento ou, melhor ainda, pelas nossas poderosas agendas eletrónicas onde achamos que cabe sempre mais qualquer coisa e onde temos a pretensão de que podemos controlar o tempo. Marcamos eventos que se tocam à tangente e sem intervalo de descanso, e assim vamos para a guerra! Contra o tempo, marchar, marchar!

Por outro lado, sabemo-lo, a perceção que temos do tempo também não é nada linear. Às vezes o tempo custa a passar. Uma aula mais chata, uma conversa mais dura, um acontecimento desagradável. Há momentos em que parece que o tempo nunca acaba e se prolonga indefinidamente quando queríamos que tudo terminasse logo ali. Outras vezes, talvez ainda com mais frequência, experimentamos o contrário. As coisas mal começaram e já estão a acabar. E nós desejávamos ficar ali para sempre, montar três tendas e permanecer no cimo da montanha ou no areal da praia, eternamente, a saborear o momento.

É certo que esperamos muito de Deus, da vida, dos outros, esperamos muito de nós próprios e esperam muito de nós. E sentimo-nos às vezes esmagados pelo peso de tanta expectativa, sem tempo e espaço para sermos nós próprios, a corresponder a tantas esperas, preocupados com tanta coisa.

Cada vez é mais frequente ouvir o lamento da voragem do tempo, como se os dias e os anos se sucedessem num turbilhão cada vez maior e mais vertiginoso. É um ano que começa e já está a acabar, são as férias que foram tão curtas, é o ano académico que termina e inicia e volta a terminar numa roda viva que não para. A pressa e a pressão quotidianas dão-nos a sensação de uma aceleração contínua e centrífuga que quer desviar-nos do centro.  E esta força, que nos puxa para fora de nós, também nos enfraquece: descentra-nos e desconcentra-nos, faz-nos sair do eixo e desorienta-nos, tira-nos a verdadeira capacidade de esperar, lança-nos demasiadas vezes para fora do hoje e do agora. Ficamos antecipadamente preocupados com o que vem a seguir ou presos ao que já foi, mas não estamos nem aqui nem agora.

Se olharmos a fundo, a grande tragédia não são as marcas que o tempo deixa em nós, mas quando sentimos que o tempo passa sem deixar marcas, sem memória e sem densidade, sem história para contar, sem peso, como se vivêssemos tudo à tangente e à superfície

É certo que esperamos muito de Deus, da vida, dos outros, esperamos muito de nós próprios e esperam muito de nós. E sentimo-nos às vezes esmagados pelo peso de tanta expectativa, sem tempo e espaço para sermos nós próprios, a corresponder a tantas esperas, preocupados com tanta coisa. É bom viver o presente com os pés assentes na terra, mas com o coração no Céu, é bom ter a força da Fé para não ficarmos parados em becos sem saída, é bom descobrir que cada momento pode ser oportunidade, é bom ter a certeza da presença de Deus e não precisar de mais nada, porque só Ele basta. É bom não ficarmos presos só às nossas expectativas, mas abrirmos o coração à novidade absoluta e inesperada que cada tempo traz à nossa vida.

Se olharmos a fundo, a grande tragédia não são as marcas que o tempo deixa em nós, mas quando sentimos que o tempo passa sem deixar marcas, sem memória e sem densidade, sem história para contar, sem peso, como se vivêssemos tudo à tangente e à superfície. É tão bom podermos recordar os momentos grandes da nossa vida, as feridas cicatrizadas que nos fazem resistentes, as rugas e as histórias que elas têm para contar, as tatuagens da nossa alma e o significado profundo de cada momento.

Não basta o tempo cronológico, é preciso descobrir que cada instante é abertura à eternidade.

Os gregos usavam para falar do tempo dois conceitos diferentes: chronos e kairos. O primeiro é o tempo cronológico, quantitativo, sequencial, mensurável. O segundo é o tempo que não pode ser controlado, o momento oportuno, o tempo de Deus, abertura à eternidade. A nós, humanos, não nos basta a cronologia, precisamos de significado. Não basta o tempo cronológico, é preciso descobrir que cada instante é abertura à eternidade.

Deixem passar o paradoxo, mas é urgente fazermos as pazes com o tempo, perdoar-lhe! E não basta conciliação, é preciso reconciliação. O tempo não é nosso inimigo nem concorrente. É um amigo e um aliado. O tempo ‘extendido’ onde podemos ser nós sem condições, é um dom precioso. Não nos queixemos do tempo (ou da falta dele). Vamos amá-lo e perdoar-lhe!

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.