Para atravessar tempos de desânimo

Nos momentos em que o chão parece abrir-se sob os nossos pés com a forma de corpo, devemos recorrer à cruz de Jesus como ponte que cruza o abismo, como caminho até à outra margem, aquela onde Deus nos chama.

Creio que todos nós, no nosso íntimo, tínhamos vindo a alimentar a esperança de que à angústia pandémica seguir-se-ia um tempo de vagarosa reconstrução. Entretanto, a invasão da Ucrânia surgiu como um ladrão na noite, há muito anunciado e por isso desvalorizado.

Talvez tenhamos terminado um sombrio e pandémico capítulo, mas as sombras expandem-se e mancham aquele que agora se começa a escrever. Estes são tempos de desânimo, algo que devemos assumir sem dissimular. E, ao assumi-lo, recordar que somos peregrinos, que somos um povo que se move entre as tendas do encontro e os poços que apagam a sede. Que somos um povo que erige altares, que atravessa desertos até às terras da promessa, guiados pelo nosso Deus, um Deus cuja presença é coluna de fogo na noite.

Nos momentos em que o chão parece abrir-se sob os nossos pés com a forma de corpo, devemos recorrer à cruz de Jesus como ponte que cruza o abismo, como caminho até à outra margem, aquela onde Deus nos chama. Porque o nosso Deus encarnou, e com a sua morte desceu aos lugares mais longínquos do amor divino. Fazendo-se presente também aí, resgata a todos das garras do vale de sombras e da morte.

O nosso Deus derrotou a morte com o amor. O nosso Deus derrota as mortes, amando. E é à partilha deste caminho com outros que dedicamos as nossas vidas.

Os tempos que nos são dados a viver levam inscrito, no seu âmago, um ousado convite de Deus Pai, endossado a cada um de nós: passar a noite com Jesus no Jardim das Oliveiras. Aí devemos resistir à dormência em que a tristeza nos tenta envolver. Aí devemos permanecer vigilantes, com Jesus. Aí somos convidados a cruzar o umbral da grande escola do discernimento e da indiferença inaciana, tudo concentrado no movimento expresso em lábios de Jesus: “livra-me deste cálice de amargura, mas cumpra-se o desígnio do Teu amor.”

Em tempos, como os de hoje, de alargado desânimo, a pergunta “quem sou?” e “como estou?” devem dar espaço ao grande chamamento de Deus: “para quem sou?”. E isto não num apagamento do “eu”, mas vivido de forma que possamos florescer, e reconhecer-nos como “amor que se dá”. E reconhecer-nos como discípulos de Jesus.

Reconheçamos a injustiça. Deixemo-nos tocar pelo clamor das vítimas. Mas não construamos altares ao desânimo. Ofereçamos ao Senhor orações plenas de ação de graças por aqueles que não se resignam diante do mal.

Os Evangelhos, bem como todos os relatos da Sagrada Escritura, são poços onde podemos saciar a nossa sede de sentido e de esperança. Estes poços são lugares-convite, que nos devem deter brevemente, lugares aos quais somos chamados para habitar, saborear, e, pela graça do Espírito, vivificar criativamente no nosso quotidiano.

Aos relatos da Sagrada Escritura, resgatados como água de poços, podemos acrescentar as muitas histórias de resistência ao mal e ajuda aos irmãos, histórias que ouvimos todos os dias. Histórias que são retrato da liberdade vivida por Jesus no Jardim, e que são tendas de encontro, onde paramos, repousamos, e que nos animam para o caminho que há ainda a fazer. Estas histórias, que se partilham e se fazem à mesa – que “fazem” mesa – são o material com o qual podemos construir os nossos altares.

Nós somos construtores de altares. Do material de que são feitos os nossos altares depende a luz que fazemos chegar ao mundo. Construamos os nossos altares com a nossa ação de graças, essa força que nos congrega em oração, e nos recorda a fonte de toda a bondade: o nosso Deus. Assim os nossos altares serão luzeiro para os que nos acompanham, e ficam no caminho como memorial da nossa oferta. Altares-fonte de luz para todos.

Reconheçamos a injustiça. Deixemo-nos tocar pelo clamor das vítimas. Mas não construamos altares ao desânimo. Ofereçamos ao Senhor orações plenas de ação de graças por aqueles que não se resignam diante do mal.

A esperança tem muitas vezes que ser arrancada da tormenta que nos habita (D. António Couto). E a liturgia recorda-nos isso mesmo com o roxo. O roxo litúrgico, que marca os tempos da Quaresma e do Advento, e que assinala o sacramento da reconciliação, para além de conversão e penitência, indica-nos a aurora, o dia que desponta, pois roxa é a cor dos céus quando preanunciam o sol nascente. Roxa é a cor que arranca a luz das trevas de morte.

Somos possuidores de uma espera habitada, daí a nossa esperança. E essa esperança vive-se com outros, recordando que Deus responde sempre com alguém aos apelos do seu povo. Foi Ele quem suscitou David, Isaías e Jeremias e, na plenitude dos tempos, enviou Jesus. E este, enviando o seu Espírito, faz da Igreja, e de todos os seus membros, enviados de Deus. Nós somos a resposta de Deus às preces da humanidade, continuadores da missão de compaixão de seu Filho pelo mundo.

Façamos da Sagrada Escritura poços que saciam a nossa sede. Façamos dos relatos de bondade as nossas tendas de encontro. E construamos altares com a nossa ação de graças, assinalando diante de Deus e do mundo, esta outra realidade que se constrói, não apesar do desânimo atual, mas no seu seio.

Assim atravessaremos o desânimo. E as montanhas abater-se-ão. E os vales altear-se-ão. E veremos surgir um caminho para o Senhor, caminho que é a nossa própria vida.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.