As últimas semanas trouxeram-me à memória dois escritores. Primeiro, Kafka e a entrada de 2 de Agosto de 1914 no seu diário: «A Alemanha declarou guerra à Rússia. À tarde, natação.» A segunda, Jane Austen; cujos livros de maturidade, escritos em plenas guerras napoleónicas, estão praticamente expurgados de referências às grandes zaragatas europeias.
Suspeito que a meia dúzia de pessoas que em Portugal se preocupa com a liberdade – e estou a contar por alto – deve ter mudado de residência para os arrabaldes da comicidade absurda ou para o remanso bucólico. Uma coisa é certa, na Assembleia da República (AR) não se encontra nenhuma. Não é preciso ir verificar o registo de presenças, a aprovação sem votos contra de um aleijão chamado Carta Portuguesa de Direitos Humanos na Era Digital (CPDHED) é prova bastante.
Aconselho a leitura da Carta que, não sendo uma epístola habitual, dá-nos conta de um novo direito: o direito à proteção contra a desinformação. Cito, com desprazer, um naco da prosa legal:
«O Estado assegura o cumprimento em Portugal do Plano Europeu de Ação contra a Desinformação, por forma a proteger a sociedade contra pessoas singulares ou coletivas, de jure ou de facto, que produzam, reproduzam ou difundam narrativa considerada desinformação, nos termos do número seguinte.»
E se o cidadão incauto não souber o que é desinformação, o legislador explica-lhe:
«Considera-se desinformação toda a narrativa comprovadamente falsa ou enganadora criada, apresentada e divulgada para obter vantagens económicas ou para enganar deliberadamente o público, e que seja suscetível de causar um prejuízo público, nomeadamente ameaça aos processos políticos democráticos, aos processos de elaboração de políticas públicas e a bens públicos.»
Esclarecidos sobre o que seja uma narrativa comprovadamente falsa ou enganadora? Não é preciso desesperar, os feitores da lei tiveram o cuidado de inventariar – servindo-se de um cauteloso advérbio de modo para não esgotar as possibilidades – em que consiste tal narrativa:
«(…) considera-se, designadamente, informação comprovadamente falsa ou enganadora a utilização de textos ou vídeos manipulados ou fabricados, bem como as práticas para inundar as caixas de correio eletrónico e o uso de redes de seguidores fictícios.»
À exceção dos «meros erros na comunicação de informações, as sátiras ou paródias», qualquer «desinformação» pode ser objeto de delação legal à sinistra Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC). Prevejo que nos próximos tempos abra concurso público de recrutamento para a ERC tal o caudal de queixas, queixinhas e denúncias.
Só por ingenuidade se pode pensar que a CPDHED tem por propósito defender os Direitos Humanos. Um diploma que integra trechos demasiado aparentados com a ominosa Lei da Censura de 1933 – veja-se a título de exemplo o artigo 3.º – não está preocupado com a defesa daqueles direitos. De resto, uma lei que incumbe o Estado de proteger os cidadãos da «desinformação» (leia-se: mentira) deveria ser o suficiente para arrepiar qualquer pessoa com mediana memória e um módico de decência.
Será o Estado, ou entidades da e na sua dependência, a julgar não só o que é verdadeiro e falso, mas também a forma como os factos – portanto, a verdade – pode ser «narrada», difundida, contada. Não é difícil imaginar o resultado: o que principiou como uma defesa dos cidadãos pelo Estado perante a mentira, depressa se transformará na defesa da «verdade» que convém aos powers that be. E tudo o que machuque estes interesses será julgado como «desinformação».
Nada disto, porém, inquietou particularmente as almas que se sentam no plenário da AR. Para memória e opróbrio futuros registe-se que a CPDHED foi aprovada com os votos do PS, PSD, BE, CDS, PAN, das deputadas não inscritas Joacine Katar Moreira e Cristina Rodrigues e a abstenção do PCP, PEV, Chega e Iniciativa Liberal (IL). Fica claro que a designação “Liberal” é somente um adjetivo da Iniciativa e não um substantivo do Partido. Tempo estranhos estes em que os partidos fundadores da democracia votam a favor de uma lei que limita a liberdade da expressão, e aquele contra o qual se conquistou e consolidou o atual regime se abstém.
Em Belém, Marcelo não vislumbrou qualquer indício de inconstitucionalidade, nem achou necessário, por cautela, remeter a lei para o Tribunal Constitucional. Por certo ocupado em pregar penduricalhos em peitos pátrios ou posar para selfies, o Presidente da República apressou-se a promulgar o diploma. Talvez os historiadores do futuro descubram no seu diário a entrada do dia 8 de abril de 2021: «De manhã promulguei a censura. À tarde fui a banhos.»
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.