Os temas que têm colocado os populistas na ribalta são muitíssimo relevantes, sérios e pouco atendidos pelo establishment. No interessante livro Populismo, os politólogos Roger Eatwell e Matthew Goodwin apontam quatro D’s que explicam o surgimento daquilo a que chamam “nacional-populismo”.
Em primeiro lugar, povo e políticos vivem em mundos diferentes, que não se cruzam, o que gera desconfiança da parte do eleitorado. Exemplos disto são o facto de em 2019 mais de metade dos cidadãos do Reino Unido considerar que o Governo “não dá ouvidos a pessoas como eu” ou, aquando da introdução da moeda única, enquanto 70% dos políticos europeus sentia orgulho na sua identidade europeia, apenas metade dos cidadãos comuns partilhar esse sentimento.
Simultaneamente, as vagas migratórias têm sido de tal ordem que se tem verificado uma “mudança hiperétnica”, o que, para os nacionais-populistas, pode precipitar a destruição do seu grupo mais amplo e do modo de vida cultural. No Reino Unido, de 2000 para 2016, a imigração como um “importante problema” passou de 7 para 48%, tornando-se assim a principal preocupação dos britânicos. Xenofobia? Não necessariamente, porque a grande maioria dos americanos ou dos britânicos considera a imigração como algo benéfico e não como um fardo, pelo que o problema está no tipo de imigração e no número.
Ao mesmo tempo, há grupos que se sentem a ficar para trás em relação a outros, com perda de nível de vida e num despojamento de esperança em relação ao futuro. Se por um lado se verificou nos EUA um aumento de 500% nos salários reais nos últimos 70 anos, por outro nem todas as pessoas sentem estes valores nos seus bolsos. Aliás, em 2012, os CEO norte-americanos tinham ordenados 350 vezes superiores aos funcionários médios, gerando uma “nova aristocracia de abastados”. Finalmente, há um desalinhamento entre os cidadãos e os partidos tradicionais, com taxas de volatilidade eleitoral bastante elevadas.
Há um desalinhamento entre os cidadãos e os partidos tradicionais, com taxas de volatilidade eleitoral bastante elevadas.
Com este cenário, é perfeitamente razoável e politicamente imperativo perguntar:
– Quando as condições de trabalho na China e os direitos, liberdades e garantias naquele país são os que conhecemos, como não pôr em causa os modelos comerciais internacionais e exigir não comércio livre, mas comércio justo e recíproco?
– Quando há centenas de milhares de estrangeiros que tentam entrar clandestinamente num país, levantando questões de segurança e tornando-se assim mão-de-obra barata para alguns empresários nacionais e condenando ao desemprego trabalhadores menos qualificados, como não discutir a imigração?
– Se se verificam algumas dificuldades de relacionamento ou entendimento das opções comunitárias de vida de pessoas de uma dada etnia com cidadãos de outras etnias, como não discutir o rumo a dar nesses contextos?
– Quando há milhares de refugiados a tentar entrar anualmente na Europa, tendo a Turquia 4 milhões de pessoas refugiadas retidas mediante os 6 mil milhões de euros que lhes pagámos para que – desculpem-me a expressão – “fechassem a torneira” e não incomodassem a Europa, como não discutir este tema?
Há temas que só são desprezados por serem as bandeiras de alguns políticos aos quais não se reconhece credibilidade. Podemos criticar as propostas – e sobretudo o tom – de alguns políticos para responderem a estas questões. Mas, de facto, quem mais além dos políticos ditos populistas se dedica a pensar estas matérias que influenciam decisivamente a vida dos cidadãos? Que outra reação se poderia esperar dos eleitores perante o surgimento de figuras como Trump, Salvini, Orbán, Bolsonaro ou Le Pen, para não mencionar outros? E pior: como é possível, após este percurso, uma vez feito o diagnóstico, os partidos tradicionais não mudarem agendas, mas, em vez disso, ficarem atarantados e dispararem contra os partidos populistas (e, com isso, contra um povo descontente cada vez mais numeroso)?
Já há uma colagem dos partidos de direita aos partidos populistas. Na Europa, só quando alguns partidos tradicionais assumiram tocar em algumas daquelas questões (como com Nicolas Sarkozy, Sebastian Kurz ou Mark Rutte) é que os partidos populistas perderam fôlego. Por mais que nos custe admiti-lo, o espaço ocupado pelos partidos populistas não é tanto ideológico; é sobretudo social. Isso revelam-no os estudos sobre as amplas proveniências políticas, sociais e económicas dos apoiantes dos partidos populistas. Estes partidos vêm preencher o espaço deixado pela não-resposta a temas essenciais da parte dos partidos tradicionais, na linha dos referidos 4 D’s.
Vou dizer o óbvio: não se está aqui a defender os partidos populistas. Mas é profundamente doloroso ver o mundo concentrado em meia dúzia de homens e mulheres que foram eleitos, em vez de atender às pessoas e às motivações que os fizeram ganhar eleições. Haver grupos que não se sentem ouvidos é ter barris de pólvora na sociedade. Mentalizemo-nos de que os apoiantes dos partidos populistas não são necessariamente o estereótipo facilmente “ostracizável” e ridicularizável dos racistas, ignorantes, anti-democratas. Enquanto estivermos convencidos disto, continuaremos num lento suicídio: partidos tradicionais vincando o fosso com o eleitorado descontente e a sociedade com uma ferida latejante que anseia por cidadãos “radicalmente moderados”. Não deixemos estas preocupações para aquelas pessoas que não queremos que nos governem, sobretudo quando manipulam emocionalmente os eleitores descontentes.
Fotografia de Koshu Kunii – Unsplash
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.