Os nossos tetos de vidro

E se todos os nossos tetos fossem de vidro? Assim, poderíamos sempre ver o céu. Do ponto de vista arquitetónico, seria deslumbrante; do ponto de vista cristão, talvez estivéssemos a falar de santidade.

Há dias, por força das circunstâncias, tive de fazer algo que não fazia há muito: andar de táxi. Já tinham passado cinco minutos dos vinte que a viagem demorou, quando me apercebi que a luminosidade que me circundava era maior do que seria de esperar. Olhei para cima e percebi: o tejadilho que nos cobria era de vidro. Não consegui conter a exclamação: “Assim podemos ver o céu!”, ao que o simpático motorista, orgulhoso do seu carro, respondeu: “À noite é ainda mais bonito, porque se veem as estrelas”.

Não pude deixar de me encantar com o facto. Por muito trivial que tenha sido aquele momento, fiquei perplexa. Não esperava que o tejadilho de um carro numa saída da 2.ª circular me recordasse a beleza do céu, das nuvens que passam e dos pássaros que voam.

Raramente pensamos nos tetos que nos cobrem. Habituados às salas onde trabalhamos ou estudamos, acostumados às suas luzes incandescentes e fluorescentes, poucas vezes olhamos para cima. Provavelmente apenas o fazemos em momentos de pouca paciência ou desespero, quando, fartos do que vemos em frente, nos encostamos à cadeira, e, num suspiro, olhamos o alto. Buscamos a beleza do céu, as nuvens que passam e os pássaros que voam.

Raramente pensamos nos tetos que nos cobrem. Habituados às salas onde trabalhamos ou estudamos, acostumados às suas luzes incandescentes e fluorescentes, poucas vezes olhamos para cima.

E se todos os nossos tetos fossem de vidro? Assim, poderíamos sempre ver o céu. Do ponto de vista arquitetónico, seria deslumbrante; do ponto de vista cristão, talvez estivéssemos a falar de santidade.

A Escritura Sagrada ilumina-nos para nos compreendermos melhor neste sentido. Ela está sempre presente e atuante nas nossas vidas, como espaço vital da nossa descoberta de sentido. Encontramos na Palavra a Beleza sempre antiga e sempre nova[1] da Revelação de Deus: o Senhor que nos criou para sermos sua transparência uns para os outros. Foi o que reconheceu São Leão Magno, Padre da Igreja: “Agnosce, o christiane, dignitatem tuam”[2] – dizia, numa Homilia do dia de Natal – “Reconhece, cristão, a tua dignidade.” e continuava: “Recorda de que corpo és membro”.

É assim que cumprimos a nossa vocação de batizados, sendo imago Dei – imagem de Deus. Recordamo-nos mutuamente que fomos criados pelo mesmo Pai providente e misericordioso. Podemos ser, precisamente, para o nosso próximo, o teto de vidro de onde se pode contemplar o Céu. Descobrimo-nos, em transparente fragilidade, filhos amados e aprendemos a rezar o Pai-nosso.

A experiência da contingência própria do corpo – nossa ou de outros – é sempre uma arma de dois gumes. É motivo de escândalo para a nossa prepotência, que insiste em segredar-nos falaciosamente que, na prática, somos omnipotentes. É motivo de alegria quando descobrimos que, afinal estas experiências tremendas nos libertam das ilusões de autossuficiência. Estas experiências que fazemos ensinam-nos com eficácia que é na relação com o outro, numa vida toda feita visitação, que nos compreendemos plenamente como pessoas.  É o rosto do outro – como nos recorda E. Levinas – que nos desperta para o Infinito.

Estas experiências que fazemos ensinam-nos com eficácia que é na relação com o outro, numa vida toda feita visitação, que nos compreendemos plenamente como pessoas.

Temos ainda tanto caminho a fazer até descobrirmos o modo de revelação da Trindade, na plenitude dos tempos: o corpo. Ao olharmos para o nosso irmão, quer seja o seu corpo cheio do vigor da juventude, enrugado pelo tempo ou débil, vítima de doença: que vemos? Sonhamos por vezes – numa infantil ilusão – com a eterna juventude. A idade da força invencível e da beleza polida[3] fascina-nos e procuramos prolongá-la a todo o custo. Escondemos as rugas e as imperfeições. Esperamos – e, por vezes, exigimos – que todo e qualquer corpo seja irrepreensível.

A este respeito, Gesché fala-nos com audácia da sempre nova boa-notícia relatada no Prólogo de São João: “E o Verbo fez-se carne e habitou entre nós” (Jo 1, 14). Desde a encarnação do Verbo, é-nos revelado que o corpo é caminho de Deus e para Deus. É digno de Deus, não apesar da sua contingência, mas na sua contingência. A novidade cristã, diz-nos o teólogo católico, consiste em encontrar no corpo do meu próximo a extensão do corpo de Cristo. A corporeidade descobre, então, para nós, um novo horizonte de sentido e de dignidade.

E nós, corpo Místico de Cristo, somos por isso transparência pela qual outros podem contemplar a Deus. Pelo Batismo, somos tornados membros do corpo de Cristo: somos, por vocação, transparência Sua, como um teto de vidro trespassado pela luz. Quem sabe, talvez tenha sido isso que Jesus disse quando, naquela planície (ou montanha) proclamou felizes os puros de coração. Felizes os olhos cristalinos e transparentes que descobrem a luz da vida que trespassa o corpo chamado ao céu. Esses verão a Deus.

 

[1] Beleza sempre antiga e sempre nova é uma expressão utilizada por Santo Agostinho, em Confissões.
[2] São Leão Magno, Homilia da Natividade, 1, 3.
[3] Segundo o fiósofo Byung-Chul Han, na obra A Salvação do Belo, o polido é o sinal que caracteriza a época atual.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.