Os ‘ladrões’ do tempo

Quando os professores chegam aos alunos estão tantas vezes já saturados, exaustos, das reuniões e da burocracia para tratar, que os momentos gratuitos da interação humana se transformam em momentos pesados porque a capacidade de escuta empática está severamente diminuída e a disposição interior praticamente falida.

Há uns anos atrás, uma amiga minha ofereceu-me o livro Momo, de Michael Ende. Da leitura que fiz, ainda recordo como um exército de figuras algo sinistras, composto por homens vestidos de gabardina cinzenta e chapéu, transformou uma grande cidade de pessoas felizes em pessoas infelizes, roubando-lhes o tempo. A pouco e pouco, a vida da cidade foi-se tornando estéril e sem brilho, da mesma cor da roupa dos ladrões do tempo. As pessoas começaram a trabalhar mais para não perderem tempo. Para aproveitarem bem o tempo, deixaram de fazer aquilo que as tornava realmente felizes e, sem se darem conta, foram sendo influenciadas pelos senhores sem identidade, de gabardina cinzenta.

Num estudo realizado a diretores de um conjunto de escolas [1], perguntava-se, durante um dia útil e típico de trabalho, qual era a percentagem de tempo que dedicavam a assuntos relacionados com a administração, com a gestão e com a liderança. O resultado, em termos globais, não andava longe destes intervalos: 25-35% para assuntos administrativos; 55-65% para assuntos de gestão corrente e só 10%, ou menos, para o exercício da liderança. Estes números dão que pensar.

Dá que pensar ver como, num dia normal de trabalho, a liderança se revela o parente pobre das três dimensões; dá que pensar ver como os diretores pedagógicos, por força das circunstâncias, acabam por ser transformados em agentes de um sistema tão centralizado que não deixa grandes margens de manobra. O urgente sobrepõe-se teimosamente ao importante e o episódio seguinte tende a repetir-se ano após ano: após um trabalho preparatório para que o arranque do ano escolar decorra sem sobressaltos, por exemplo, eis que a meio do ano letivo as regras do ‘jogo’ mudam, ao sabor não se sabe bem de quê, numa volatilidade que vai mareando sem que se perceba muito bem qual o seu rumo.

Em praticamente todos os anos há alterações legais que ocorrem no decurso do próprio ano letivo tornando quase impossível prever, no seu início, se a regulamentação se irá manter até ao final ou não. O mundo da educação é, a este nível, uma caixinha de surpresas, nem todas elas facilitadoras da ação educativa, da sua finalidade primordial. O ambiente e a atmosfera de uma escola que deveriam transformá-la num lugar de acolhimento e de relação recíproca, propiciadora das diferentes aprendizagens, podem convertê-la num não-lugar de cansaços, gerador de indiferença, apatia e desinteresse, pela crispação e tensões que daí advêm.

A distribuição dos afazeres e ocupações das chefias de topo, de que falava, acaba por se reproduzir nas chamadas lideranças intermédias e, por fim, nas bases, chegando aos professores-educadores, aqueles que mais tempo estão com os alunos, nas aulas e fora delas, que os ensinam e educam. Mas quando os professores chegam aos alunos estão tantas vezes já saturados, exaustos, das reuniões (que têm uma hora para começar, mas não para terminar) e da burocracia para tratar, que os momentos gratuitos da interação humana se transformam em momentos pesados porque a capacidade de escuta empática está severamente diminuída e a disposição interior praticamente falida.

“Porque é que te refugias no gabinete? Porque é que tens estado tanto na sala de professores? Não era teu costume…” “Para descansar, respirar um pouco, e não dar azo a que seja abordado por um aluno a pedir ajuda ou a querer tirar uma dúvida. Hoje, já não posso mais. Estou arrasado.” Mas este “hoje”, infelizmente, tende a repetir-se amanhã e depois, cada vez com mais frequência à medida que o ano letivo avança e o desgaste se acumula. Há cansaços que nos enchem e dão brilho ao nosso olhar e há outros cansaços que nos esvaziam quase por completo.

O que outrora era sonho e paixão, começou a tornar-se, em muitos casos, pesadelo e desilusão. “Tenho de fazer isto e aquilo e aqueloutro” por imposição legal, por decreto, por ordem superior. Uma pessoa é contratada para ser professor, para ensinar e educar, para estar com os alunos, para ser criativo e preparar boas aulas, mas o tempo passado em reuniões, no meio de longas agendas, comunicados, formulários, grelhas para preencher, dossiers, Decretos-Lei, Despachos, vai sendo cada vez maior. E alteram-se os DL’s; este já não é o mesmo do ano passado. Acaba de ser publicado um novo Despacho que completa o anterior, que por sua vez anula o Despacho anterior ao anterior. Os programas vão mudar, o manual adotado é de outra editora; este professor vai mudar novamente de escola, ficará mais distante da residência e da família; a viagem de automóvel casa-escola-casa será mais longa. Contabiliza os dias que faltam para um feriado, para um fim de semana prolongado, para as férias intercalares. Teme seriamente o burnout.

Afinal, os ‘senhores de gabardina cinzenta’ também existem nos agrupamentos de escolas. Querem que os professores estejam bem ocupados, que aproveitem muito bem o tempo com tarefas suplementares, mas isso rouba-lhes a vitalidade e a energia; rouba-lhes o tempo reservado para ser dedicado a um dos essenciais mais fundamentais da educação: estar com os alunos, acompanhá-los, escutar as suas inquietações, as suas dúvidas, adivinhar a causa das suas tristezas e ansiedades, partilhar e acalentar o sonho que os move e os motiva, despertar interesses adormecidos, ajudar a que eles cresçam em autonomia e liberdade. Mas para que isso aconteça é necessário tempo para a relação interpessoal, para falar e para escutar, para expressar os pensamentos e os sentimentos, e acolher o que o outro queira segredar.

Não admira, portanto, que haja quem espreite uma janela de oportunidade para mudar de profissão: “Se eu pudesse, era já!” E também não espanta que, no outro extremo, como tão bem demonstrou Alexandre Homem Cristo no artigo «Os bons alunos não querem ser professores. E isso é um problema.», a porta comece a fechar-se. Um diretor pedagógico de um colégio confidenciava que estava há meses à procura de um professor de inglês e não conseguia encontrar quem pudesse contratar. Tudo isto são sintomas de uma longa e lenta erosão que vai degradando e impedindo a possibilidade de descobrir o tesouro escondido na Educação [2].

Quando um jovem português foi estudar num outro país ao abrigo do programa Erasmus, a pessoa que o iria receber escreveu-lhe esta mensagem: “Não chegues na véspera do início das aulas. Vem uma semana antes, pelo menos, para nos conhecermos, conheceres a cidade e a Faculdade.” E rematava sabiamente que “o tempo ‘perdido’ gera amizade!”

É exatamente esse tempo que já não temos para ‘perder’, porque o que tínhamos foi roubado por uns ‘senhores de gabardina cinzenta’ – quem e o que quer que sejam – e que tanta falta nos faz para crescermos em humanidade. A Internet, os computadores, os telemóveis, podem informar e instruir; mas só as pessoas podem humanizar na proporção do tempo que lhe dedicam. Os professores-educadores são construtores de humanidade porque acreditam que essa nobre tarefa pode transformar o mundo e tornar a sociedade mais justa e solidária.

Volta Momo, regressa Mestre Hora e, tal como no livro de Michael Ende, ajuda a recuperar a alegria de viver, de ser e de estar, com a paz de quem vê o invisível e semeia com esperança, ainda que não veja logo o fruto do seu esforço, dedicação e empenho; ajuda a não sermos vencidos pelos ‘senhores de gabardina cinzenta’, por tudo aquilo que, ao fim e ao cabo, nos rouba o tempo dos essenciais e a possibilidade de uma vida vivida em profundidade.

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[1] Estudo realizado no âmbito de uma disciplina académica e integrado num trabalho de projeto.

[2] Cf. Jacques Delors (Coord.), Educação: um tesouro a descobrir, Relatório para a Unesco da Comissão Internacional sobre Educação para o século XXI, Edições ASA, 2ª edição, 1996.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.