Os “exílios” da Igreja

A ressurreição, longe de negar ou anular esse exílio, dá-lhe uma dimensão completamente inaudita. A vocação do novo povo, neste aspeto, não é muito diferente da vocação do povo “antigo”.

Para o leitor minimamente familiarizado com o mundo bíblico, o conceito de exílio evoca uma das maiores catástrofes do Povo de Deus (primeiro, com a queda do reino de Israel e, pouco depois, do reino de Judá). No contexto escriturístico, essa catástrofe das catástrofes é habitualmente interpretada como castigo de Deus pelas infidelidades do Povo.

Sem contestar essa frequente interpretação teológica – que, em realidade, constitui um recurso, sobretudo profético, para criticar as prevaricações do povo, nomeadamente dos seus líderes, em nome do poder adquirido – sabemos que, nas perspetivas histórica, política, social e mesmo religiosa, o exílio marca uma espécie de início do Povo de Israel (depois projetado, retrospetivamente, no êxodo do Egipto, também esse apresentado em relação a um exílio). Foi precisamente durante o “exílio” na Babilónia – ou a crise correspondente – que foi surgindo certa consciência de povo e aquilo que viria a originar, no “regresso”, a configuração da Escritura propriamente dita (nomeadamente a Torá, que viria a constituir a referência identitária fundamental). Esta refletiu, já, uma “releitura” teológica da história anterior, ainda dispersa e sem uma consciência política e teológica consistente. E essa releitura é fruto, por um lado, da experiência dolorosa que conduziu ao exílio e, por outro lado, da experiência enriquecedora que o inevitável convívio com outras culturas proporcionou. Sem a dor da rutura com uma anterior vinculação problemática – nomeadamente com a vinculação ao território e a dinâmicas político-culturais demasiado estreitas, assentes no desejo de um poder e uma “terra” mais ilusórios que reais – e sem o contacto com os “outros”, com o diferente, a perspetiva teológica que preside à organização dos escritos bíblicos seria, em realidade, impensável.

Sem a dor da rutura com uma anterior vinculação problemática – nomeadamente com a vinculação ao território e a dinâmicas político-culturais demasiado estreitas, assentes no desejo de um poder e uma “terra” mais ilusórios que reais – e sem o contacto com os “outros”, com o diferente, a perspetiva teológica que preside à organização dos escritos bíblicos seria, em realidade, impensável.

Sabemos que, na história de Israel – e mesmo na história do judaísmo, em sentido próprio – um outro exílio marcou fortemente uma perspetiva incontornável do mundo: precisamente a diáspora que se seguiu à destruição do templo, já na era cristã. Esse exílio viria a confirmar dois paradigmas de interpretação da existência, mesmo da existência como povo: o paradigma da vinculação ao território, à posse, à segurança, no desejo permanente de regresso à “terra prometida”, a que o movimento sionista deu corpo da forma talvez mais explícita; e o paradigma da diáspora, da capacidade de romper com a segurança da posse e do domínio, na abertura a um futuro inédito, em qualquer lugar e em qualquer tempo, porque não completa e exclusivamente vinculado ao espaço e ao tempo. Trata-se da experiência da dimensão “messiânica”, sem messias determinado, muito menos com a vinculação a um messias demasiado estreito e redutor, como poderia ser a posse de um território, de uma etnia, ou mesmo de um meio de salvação garantido.

Poderíamos considerar que o cristianismo, através da identificação de Jesus com o messias – identificação teologicamente não isenta de muitas ambiguidades – teria resolvido o problema do paradigma do exílio, permitindo a vinculação a uma salvação já dada, segura, dominada. Mas isso seria ignorar que o messianismo de Jesus tem, talvez, maior proximidade com a diáspora do que com qualquer segurança equivalente à posse de uma “terra prometida”. E, de facto, tudo começou com um exílio tremendo, precisamente o exílio da cruz, que constitui uma profunda rutura em relação a todas as expectativas anteriores. A ressurreição, longe de negar ou anular esse exílio, dá-lhe uma dimensão completamente inaudita. A vocação do novo povo, neste aspeto, não é muito diferente da vocação do povo “antigo”. Mas, assim como Israel procura regressar, ciclicamente, ao calor da “terra prometida”, também a Igreja é frequentemente assaltada pela tentação do refúgio no seu recanto pretensamente seguro, recusando a permanente exposição ao exterior de si e o risco de aprender com os outros.

Acontece que vivemos permanentemente em diáspora, não propriamente por não nos permitirem regressar a casa, mas porque não temos “morada permanente”, enquanto habitação ou lugar fixo, não num território, mas também não numa cultura, nem sequer num modo predeterminado de estar. Vivemos, isso sim, na complexidade do mundo, mergulhados na diversidade das perspetivas, com a permanente exigência de dar corpo concreto ao Evangelho, sem que esse corpo esteja previamente determinado – por ninguém, muito menos por nós próprios. Sendo assim, nossa é a condição de exílio, que é uma condição profundamente fértil. E os maus não serão os babilónios – nem os bons seremos nós. Tudo é bem mais complexo. Tudo exige permanente discernimento, também permanente debate, num caminho aberto, que é comum a todos os humanos – e para além dos humanos. Não que a verdade seja resultado da maioria, ou efeito do poder; mas também não é nossa propriedade, porque muitas das nossas “verdades” tem sido e continuarão a ser permanentemente crucificadas. Saibamos, pelo menos, aprender com a história – a história passada, e a história feita pelos nossos contemporâneos.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.