Os discursos de Tuiavii, chefe de tribo de Tiavéa nos mares do Sul

Os relatos colocam sempre à prova os limites em que muitas vezes enclausuramos a natureza humana, mas o relato de Tuiavii põe em crise todas as fronteiras, em especial aquelas que imaginamos entre o mundo e as palavras.

Em outubro passado, estive de cama alguns dias. Por essa altura, andava com vontade de ler um livro que uma amiga me tinha emprestado há algum tempo.

Como as dores de cabeça não deixavam os olhos descansar sobre as páginas, pedi a alguém para me enviar o texto em gravações.

A minha amiga tinha anotado em cada um dos capítulos um dia da semana, uma disciplina rigorosa de leitura. Foi respeitando esse ritmo que me leram, por meio do telemóvel, os discursos de Tuiavii, chefe de tribo de Tiavéa nos mares do Sul, reunidos sob o título O Papalagui [1].

Tuiavii visitou a Europa algures no século vinte e, no regresso, contou à sua comunidade o que viu.

Os relatos colocam sempre à prova os limites em que muitas vezes enclausuramos a natureza humana, mas o relato de Tuiavii põe em crise todas as fronteiras, em especial aquelas que imaginamos entre o mundo e as palavras. Porque Tuiavii tem dom para o tiro ao alvo e crava fundo a ponta das palavras no centro da realidade (e no ainda mais pequeno círculo da verdade).

Pelo menos desde o Génesis (2, 19) que, connosco, as coisas se passam assim. O mundo vem até nós e a língua estremece. Qualquer coisa nos atinge, com fúria ou delicadeza, e ficamos logo desamparados, à espera de um nome que nos socorra. O idioma apressa-se a procurar uma outra forma de responder aos golpes dos dias.

Quando a linguagem é um lago de águas paradas, e as coisas estão definitivamente nomeadas e encerradas, ou o mundo deixou de visitar a nossa pele – e prefiro acreditar que isto não é possível -, ou fomos nós que nos desinteressámos, ignorámos, ficámos tristes demais para olhar.

É que Tuiavii tem modos de falar do que eu conheço que me deixam preocupado com os meus níveis de atenção. Ele dá uma boa lição ao escritor e ao falante.

Tuiavii não estava triste demais.

Ao escutar o seu relato, devo ter sentido qualquer coisa parecida aos olhos esbugalhados do meu primo recém-nascido. É que Tuiavii tem modos de falar do que eu conheço que me deixam preocupado com os meus níveis de atenção. Ele dá uma boa lição ao escritor e ao falante:

1. Olha o que te rodeia como se te fosse desconhecido (as pandemias tornam este passo mais fácil). 2. Imagina uma comunidade para quem isso é igualmente desconhecido (idem). 3. Agora, procura palavras para contar à comunidade (que se revelará, como verás, muito pouco imaginária) esse desconhecido, tornando-o o mais familiar possível. É um estranhamento que, no final, trará frutos bem preciosos: frutos que contam melhor o que esteve sempre ao pé dos dedos.

Tuiavii contou-me que vivo «numa concha dura», «num baú de pedra posto ao alto». Entro no «baú de pedra» por um «grande batente de madeira» que é necessário empurrar. Se quiser entrar no «baú de pedra» de outra pessoa tenho de premer numa «grandiosa imitação de um mamilo de mulher, até soar um grito», e esperar que alguém, do outro lado, venha abrir o «batente de madeira». Na sua língua, «meu» significa «teu» e, na minha, não há palavras mais diferentes do que estas. (A palmeira que cresce em frente da minha cabana é só minha, e isto Tuiavii não compreende, como não compreende porque ando carregado de «metal redondo e papel forte»). Eu soube, também por ele, que corto o tempo «como se cortaria em pedaços uma noz de coco mole com um cutelo». O tempo, para mim, é uma noz de coco mole feita em pedaços. A Tuiavii, se lhe arder um desejo de deitar-se ao sol, ou andar de canoa no rio, não há «máquina achatada e redonda» que o faça ler o tempo e o impeça de responder à chamada do sol e do rio. Tuiavii lê o tempo à sua volta, dentro dos seus desejos; o tempo está no coração de Tuiavii.

É muito difícil ser sincero, na palavra, com a vida. Na maior parte das vezes, estamos todos a fugir da verdadeira literatura. Eu não tenho dúvidas de que, no meio do ruído, é Tuiavii quem chama as coisas pelos nomes.

[1] O Papalagui. Discursos de Tuiavii, Chefe da tribo de Tiavéa nos mares do Sul, recolhidos por Erich Scheurmann, trad.port. Luiza Neto Jorge, Edições Antígona, Lisboa, 1986. Papalagui é o termo utilizado por Tuiavii para designar o homem branco.

 

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.