Os cinzentos

Num levantamento feito há pouquíssimo tempo num universo de 900 alunos, concluímos que os cinzentos elogiam o que em certos casos lhes poderá estar a ser subtraído: fundamentalmente, professores disponíveis e que expliquem bem.

Os cinzentos não se distinguem dos outros quando chegam à escola. Chegam, como os outros, de trolley pela mão, com as rodas a chispar na calçada, em esforço para acompanhar uma corrida para a qual ninguém as concebeu. Chegam, como os outros, escondidos sob um capuz, protegidos de todas as ameaças imaginadas. Chegam, como os outros, de headphones colados aos ouvidos, com o ar digno e indiferente de quem escuta poesia no meio da prosa. Chegam, como os outros e com os outros, tagarelando de telemóvel na mão, com o dedo no gatilho da selfie.

Até passarem a porta de entrada da sala de aula, os cinzentos não se distinguem dos outros, mas o lugar em que se sentam denuncia-os de imediato. Raramente se sentam à frente, ao lado de quem tem um déficit de atenção, uma dislexia, uma disortografia ou uma discalculia ou ao lado de quem se aplica em acompanhar todas as aulas e está habituado a ver o seu mérito refletido nas classificações. Não se sentam atrás, ao lado de quem já teve umas faltas disciplinares ou ao lado de quem acaba sempre por brilhar independentemente do lugar que ocupe. Sentam-se sobretudo no meio, naquele intervalo que os separa de uns e de outros, no intervalo dos extremos coloridos que se tocam.

Não foram definidas para eles medidas universais, seletivas ou adicionais de suporte à aprendizagem. Nunca foram feitos sobre eles relatórios técnico-pedagógicos nem nunca ouviram falar de programas educativos individuais. Mas também não têm lugar no quadro de mérito e raramente são apontados como modelo de excelência. Quase nunca são parabenizados publicamente pelos resultados académicos que obtêm, como se houvesse apenas mérito em alcançar um 10 ou um 18, mas não um 13. Nos projetos, fazem grupo uns com os outros, equilibrando o equilibrado. Quando se misturam com os outros, ficam com os papéis que sobram, porque é importante atribuir a liderança do grupo a quem tem de desenvolver essa área ou a quem a tem muito desenvolvida e pode, por esse motivo, representar um modelo para os outros.

Pouco se dá pelos cinzentos nos conselhos de turma, porque não lhes assiste a fortuna dos desempenhos extraordinários que arrancam odes aos professores nem se lhes dedica a lentidão burocrática de relatórios acerca de relatórios ou de grelhas para preencher.

Pouco se dá pelos cinzentos nos conselhos de turma, porque não lhes assiste a fortuna dos desempenhos extraordinários que arrancam odes aos professores nem se lhes dedica a lentidão burocrática de relatórios acerca de relatórios ou de grelhas para preencher. Os cinzentos não alcançam o mérito que faz os bons alunos deslizar na passerelle dos aplausos em direção ao Olimpo, mas também não beneficiam de uma avaliação de 360°, que vai além das classificações dos testes e que perscruta os alunos de diferentes perspetivas até se descobrir o mérito necessário à valorização do esforço.

Posto isto, não creio que se aplique na escola o que Michael J. Sandel identifica[1] – e bem – na sociedade: a tirania do mérito que encontramos na sociedade não encoraja na escola os alunos «vencedores a atribuírem o seu sucesso aos seus esforços, enquanto os perdedores ficam com a impressão de que aqueles que estão no topo os olham com desprezo». A primeira parte da frase está certa, mas a segunda não. Na escola, não há «perdedores», porque aos que seriam «os perdedores» é-lhes reconhecido mérito. Quando o mérito não está na inteligência lógico-matemática (a linguístico-verbal já vai perdendo peso no reinado das STEAM[2]), descobre-se no aluno uma inteligência na qual, de modo inclusivo, possa habitar o mérito. Mas os cinzentos pouco ou nada recebem desta atenção. Na escola, são as maiores vítimas da tirania do mérito.

Dedico um parágrafo à seguinte chamada de atenção para que não haja dúvidas: apesar do registo hiperbólico dos parágrafos anteriores, defendo que o que está a ser feito com os alunos que necessitam de medidas mais diferenciadas é o que deve ser feito com os alunos que necessitam de medidas mais diferenciadas e que muitas vezes, por falta de recursos ou por outros motivos, isso não é suficiente. O meu foco não está nesses alunos, está naqueles que não beneficiam de focos.

É muito conhecido o cartoon do professor inflexível que obriga todos os animais, qualquer que seja a espécie, a subir a uma árvore para passarem num exame.

Já o vi ser usado várias vezes para ilustrar a defesa de uma escola inclusiva. Os bons alunos são os pássaros, que atingem níveis inalcançáveis para os demais. Os alunos com medidas mais diferenciadas são peixes, que delas necessitam para subir à árvore. Penso que os cinzentos serão os macacos, que, com maior ou menor dificuldade, acabarão por subir sozinhos à árvore, mas sem atingir os galhos onde os pássaros podem pousar. Mas será que têm todos de subir à árvore? O mérito esgota-se na subida à árvore? Numa sociedade meritocrática, todos são obrigados a subir à árvore do mérito dos exames nacionais e à árvore do mérito de entrar numa boa universidade. Há percursos alternativos válidos, mas são muitas vezes olhados com um desprezo velado. Se não tivéssemos a visão reduzida da obrigatoriedade de subir à árvore, os pássaros subiriam às árvores com igual facilidade e alguns macacos também, mas sem medidas adicionais; e os peixes nadariam num lago e alguns macacos também, mas sem medidas adicionais. Levar aquários para cima das árvores com os olhos postos nos pássaros desvia a atenção dos macacos. Este é o meu ponto. Mas não tenho a ilusão de que mudemos em pouco tempo as nossas perspetivas meritocráticas sobre o mundo. É com a necessidade de subir às árvores que temos de contar agora, por isso, sem deixar de levar o aquário numa mão e sem deixar de ter os olhos postos nos pássaros, não será possível estender a mão livre aos macacos?

O que escutamos quando se dá voz aos cinzentos? Quando se passa um questionário de avaliação da escola aos alunos, as filas da frente e de trás diluem-se na voz da maioria cinzenta. E o que elogiam eles? Num levantamento feito há pouquíssimo tempo num universo de 900 alunos, concluímos que os cinzentos elogiam o que em certos casos lhes poderá estar a ser subtraído: fundamentalmente, professores disponíveis e que expliquem bem. Os bons alunos não são autodidatas nem são desprezados pelos professores, mas sentirão menos falta da sua disponibilidade para os ajudar na recuperação de alguma aprendizagem e muito provavelmente serão menos sensíveis a exposições da matéria menos claras ou lacunares. Os alunos que beneficiam de medidas mais diferenciadas, se elas forem devidamente aplicadas, pois preveem muitas vezes que os professores dediquem a esses alunos uma atenção especial, não terão queixas acerca da disponibilidade do professor ou acerca de explicações claras, de que acabam por beneficiar ao abrigo das medidas de apoio. Mas os cinzentos não. E, ainda assim, sobem às árvores como os outros, por isso gostam quando sentem que a disponibilidade do professor lhes é extensível e quando escutam um discurso que vive bem no intervalo da meia velocidade.

Não defendo aqui nenhuma medida estratégica urgente para as escolas, nem tão-pouco aponto críticas. É apenas uma partilha, um desabafo de quem, mal ou bem, vai tentando estender a mão aos cinzentos. Se não fizermos absolutamente nada, os cinzentos continuarão a correr com as rodas do trolley a chispar e continuarão de headphones pregados aos ouvidos, como todos os outros. E se, a meio de uma aula, lhes perguntarmos como vão, não vão criticar nada, vão responder o que, a propósito de uma pergunta diferente, o pai responde ao filho no filme Boyhood, de Richard Linklater: «We’re all just winging it, you know?».

 

[1] Michael J. Sandel, A Tirania do Mérito
[2] Acrónimo de Science, Technology, Engineering And Mathematics.

Fotografia de Andrew Neel – Unsplash

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.