Os católicos franceses e a extrema-direita – ontem e hoje

Um agressivo polemista de extrema-direita, Zemmour, lamenta a decadência da França tradicional, onde tinha peso a Igreja católica. Mas a maioria dos católicos franceses, hoje, não é reacionária nem antidemocrática.

Em França, no próximo mês de abril, realizam-se eleições presidenciais. A novidade destas eleições está na candidatura de Éric Zemmour, de extrema-direita, ou seja, ainda mais à direita do que Marine Le Pen.

Éric Zemmour, de 63 anos, não tem qualquer experiência política. É um polemista agressivo com traços de intelectual (publicou três livros). Nascido de pais argelinos, é um judeu berbere. Zemmour significa “azeitona” em berbere.

O principal alvo das inflamadas tiradas de Zemmour é o Islão. Ele queixa-se de que a identidade nacional francesa está a ser destruída pelos islâmicos, que ameaçam a sociedade patriarcal branca. Diz ele que os antigos colonizados passaram a colonizadores em França. Zemmour não gosta da União Europeia e defende a soberania francesa.

Com raízes na Argélia, Zemmour coloca-se na posição dos que lutaram contra a independência argelina; há um certo revanchismo colonialista nesta sua atitude, que vai ao ponto de aceitar, e até elogiar, o emprego da tortura.

Zemmour respeita o general de Gaulle, mas branqueia o regime de Vichy contra o qual de Gaulle se ergueu. E louva o líder deste regime, o general Pétain, que enviou muitos judeus para a morte nos campos de concentração alemães.

Apesar de judeu, Zemmour também revela traços de antissemitismo; afirma, por exemplo, que, no século XIX, os judeus em França eram um “partido do estrangeiro”. E sugere que Dreyfus – um oficial judeu injustamente acusado de traição em 1894 e depois reabilitado – poderia, afinal, ter sido mesmo um traidor…

De algum modo Zemmour regressa ao grande conflito entre os políticos secularistas, anticlericais, de um lado, e, do outro lado, os monárquicos tradicionalistas católicos, na França do séc. XIX e primeiras décadas do séc. XX.

Trono e altar

Depois da queda do império de Napoleão III e da proclamação da III República, em 1870, os católicos monárquicos franceses manifestaram durante muito tempo a convicção de que a restauração da monarquia seria a única forma de alcançarem a derrota dos republicanos anticlericais. Era uma batalha pelo trono e pelo altar.

O Papa Leão XIII condenou a maçonaria em 1884, mas tentou convencer os católicos franceses de que eles deveriam lutar pelos seus ideais no quadro das instituições republicanas do país. Por outras palavras, Leão XIII procurou desligar a luta pelo trono da luta pelo altar. A posição deste pontífice foi mal recebida por uma grande parte dos católicos em França, que no fim do século XIX tiveram dificuldade em digerir a encíclica “Rerum novarum”.

O caso Dreyfus, que se arrastou durante doze anos, mostrou até que ponto na atitude dos católicos as considerações religiosas (ou como tal assumidas) estavam intimamente ligadas à hostilidade às instituições republicanas. Em parte, porque estas estavam muito marcadas pelo anticlericalismo dominante.

Foi assim que a maioria dos católicos manteve longo tempo a convicção de que o judeu Dreyfus era culpado de traição, apesar de se terem tornado evidentes as provas de que ele estava inocente. Ou, pior, dir-se-ia que esses católicos não se importavam de condenar um inocente, desde que este fosse judeu. Não foi uma atitude bonita de se ver.

Action Française

O conflito entre o secularismo defendido pelos principais políticos franceses e a tradição católica conheceu um novo marco com a lei da separação da Igreja e do Estado, em 1905. Hoje, os bispos franceses não têm qualquer problema com essa lei, mas na altura muitos católicos em França sentiram-na como uma afronta.

Esse sentimento foi depois aproveitado por um intelectual nacionalista, antidemocrático, antiparlamentar – Charles Maurras. O curioso é que Maurras não era crente, era ateu, mas valorizava muito a importância social e política da religião, de grande utilidade para enquadrar o povo ignorante.

Maurras foi o principal ideólogo da Action Française, uma organização monárquica, contrarrevolucionária, antiliberal e antidemocrática que surgiu em França nos finais do séc. XIX. Admirador de Salazar, Maurras teve grande influência nos católicos franceses e portugueses nas primeiras décadas do séc. XX.

Mas o Papa Pio XI condenou em 1926 a Action Française, denunciando a sua inspiração pagã. Ora parece existir hoje, em França, um certo regresso a Maurras, cujas obras foram reeditadas em 2018.

Tal como Maurras não era crente, também Zemmour não é religioso. E Zemmour é apreciado por católicos franceses que não se reveem no Papa Francisco.

Há um claro paralelismo no modo como estes dois personagens encaram a situação do seu país. Maurras distinguia entre a França autêntica, rural e tradicional, o país real em suma, e a França decadente, dominada pelos políticos anticlericais, pelos judeus, pelos maçons, pelos estrangeiros, etc.

Situação atual

Hoje, Zemmour mostra nostalgia pela França tradicional, onde a Igreja católica tinha uma influência social dominante, queixando-se de que o país está a ser tomado de assalto pelos islâmicos; e ataca o feminismo, considerando que o poder político deve ser exercido por homens (por isso as mulheres o detestam).

A principal diferença entre a situação no tempo de Maurras e a situação atual está na evolução entretanto registada na atitude política da maioria dos católicos franceses. O peso dos católicos na sociedade francesa diminuiu muito desde há um século. Mais importante, os católicos franceses já não constituem uma força reacionária, oposta à democracia e à liberdade de consciência.

O Concílio Vaticano II foi decisivo para essa mudança. Lê-se no primeiro parágrafo de um dos mais importantes textos conciliares, a Constituição pastoral “A Igreja no mundo atual” (Gaudium et Spes): “As alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje, sobretudo dos pobres e de todos aqueles que sofrem, são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo; e não há realidade alguma verdadeiramente humana que não encontre eco no seu coração”. A Igreja, que hostilizou o mundo, fez as pazes com o mundo.

Está totalmente ultrapassada a ideia de formar em França um partido católico. Os católicos franceses distribuem-se por vários partidos, ou não se identificam com qualquer força política, situação que é própria de sociedades pluralistas.

No plano religioso a maioria dos católicos, em França, segue hoje o Papa Francisco. Os católicos que apoiam Zemmour são uma pequena minoria que não apreciou o Concílio e hoje procura guerrear o Papa Francisco. É uma situação completamente diversa da vivida naquele país há um século.

Fotografia de Illian Derex – Wiki Commons 

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.