Nota prévia: o exposto tem um único propósito: preparar o caminho que me vai levar até aos leitores.
É para mim tão difícil escrever, preencher páginas em branco, que ainda me custa compreender como foi possível ter aceitado este desafio para participar no projeto do portal Ponto SJ. Interrogo-me se não terei sido empurrado pela mesma mão que ajudou Maradona no golo histórico que deu o apuramento à Argentina para os quartos-de-final do Mundial de 87 na Cidade do México. Só pode ter sido isso! Depois do jogo, quando alguém perguntou ao craque argentino se tinha marcado o golo com a mão, ele respondeu: Não, não, marquei-o com a cabeça, mas contei com a ajuda da “mão de Deus”. As imagens desse golo correram mundo e o atleta foi severamente criticado pela falta de ética desportiva.
Claro que me preocupam as normas morais por que se regem as sociedades humanas e “a mão de Deus” nesse golo do Maradona foi tudo menos um processo digno. No entanto, diz o “artista” que o golo foi também marcado “um pouco” com a cabeça. E esse é que é verdadeiramente o ponto que me inquieta já que podendo ter sido eu “empurrado pela mão de Deus” para esta contenda, duvido muito sinceramente se terei cabeça (arte ou engenho) para marcar golos tão redondos e particulares como o Maradona. Não golos como este marcado com a mão (uma fraude), mas dos outros, dos que arrepiam ao serem revistos, como “o golo do século” apontado 4 minutos depois desse outro, no mesmo encontro da Argentina com a Inglaterra. Um deslumbramento!
Acredito que, por muito que tente, nunca conseguirei performances semelhantes/comparáveis às do Maradona nesta versão de escrevinhador. A mim bastava-me cumprir o prometido e durante um ano refletir e escrever periodicamente sobre questões da cultura desportiva nacional e internacional como quem voa baixinho. Serei capaz, serei suficientemente competente?
Confesso que fiquei surpreendido por ler o meu nome na lista de “artilheiros da cultura” escolhidos para alinharem neste desafio. Um pasmo semelhante ao do momento em que me confrontei com a convocatória para o meu primeiro jogo oficial ou com a primeira chamada à Seleção Nacional. Partilhar responsabilidades com os mais velhos, com os mais experientes, com os “nossos ídolos” é uma experiência ímpar, algo irreal, uma sensação estranha que nos deixa sem forças e nos faz sentir pequenos, muito pequenos.
Neste desafio que hoje começa farei equipa com outras seis pessoas bem melhor posicionadas no ranking dos “artilheiros nacionais” destas lides. A tática, dada por quem comanda, pode ser resumida do seguinte modo: eu ataco “pelo miolo” no desporto, eles “avançam pelas alas” nas artes, nas ciências e nas tecnologias. Para que não restem dúvidas apresento adiante a lista desses meus companheiros, respeitando a ordem por que me foram anunciados: Jacinto Lucas Pires, Clara Almeida Santos, Carlos Damas, João Paiva e Andreas Lind e Bruno Nobre. É com eles que durante um ano vou partilhar este palco e repartir a atenção de todos os que nos irão ler. Veremos se conseguimos “impor o nosso jogo” e se foi boa a decisão do “mister” de me por a atacar “pelo miolo” e a refletir sobre cultura desportiva. Serei mesmo capaz, serei suficientemente competente?
É tão difícil responder a esta pergunta como foi difícil durante mais de 20 anos ficar longe do fascínio dos treinos e da competição, primeiro como atleta e depois, por mais outros 20 anos, como treinador de equipas de formação e competição. Quanto mais crescia mais intrigado ficava com a atração que sentia pelo desporto/jogo. Só mais tarde, quando me dediquei apenas ao ensino, resolvi esta incógnita. De facto, só aí percebi que era a imprevisibilidade o que mais me fascinava no jogo e que os problemas dessa imprevisibilidade se solucionavam ou se reduziam esgrimindo os mesmos valores com que fui construindo os alicerces da minha vida: liberdade, cooperação e partilha. Foram estes ideais que o desporto me incutiu e a presença protetora da família que me garantiram margem para suster os desenfreados anos da minha juventude e adolescência.
Foram muito loucos aqueles anos, porém tive a sorte de me apaixonar pelo desporto e ele ter tomado conta de mim, protegendo-me e ajudando-me a construir a minha identidade. Foi o desporto que me ensinou a teimar para chegar mais longe e a trabalhar duro e em equipa para encarar os desafios com mais confiança. E ensinou-me uma outra coisa, bem importante: a ser ousado. É, por isso, que estou aqui.
O desporto também me ensinou que as ousadias por vezes se pagam caro. Antes que me arrependa de tanta afoiteza ou que alguém mais avisado me ponha a milhas deste projeto, quero aproveitar esta oportunidade para fazer uma confissão e pedir perdão por um pecado que cometi como treinador. Há muitos anos, quando as minhas articulações ainda funcionavam na perfeição, fui treinador do meu filho durante uma época desportiva. Ele tinha apenas 12 anos e participava no treino com o mesmo empenho de qualquer um dos outros jovens jogadores da equipa. No entanto, por mais que ele tentasse destacar-se no campo eu não o via, ou melhor, não lhe dava a importância devida com receio de o poder favorecer. Era como se ele fosse invisível. Para além disso, com ele – e só com ele – eu era intransigente em muitas situações e excessivamente severo e exigente. Em todos os treinos eu repetia para comigo: sou apenas o treinador daquele rapaz e nada mais.
Percebi já tarde que treinar o meu filho era uma equação sem solução, uma impossibilidade que deixou marcas pessoais nos dois e teve custos tremendos, mesmo no plano familiar. Naquela época o meu filho deveria ter sido convocado para todos os jogos (e não foi) e deveria ter sido nomeado para a “equipa ideal” do clube e incentivado e acarinhado como os restantes atletas (e também não foi). E porquê? Porque não antecipei o que era óbvio (por princípio um pai nunca deve ser treinador ou professor de um filho) e, sobretudo, porque caí na armadilha do orgulho e do preconceito, tornando o tempo do treino e da competição do meu filho num enorme sacrifício sem alegria, prazer ou divertimento. Visto daqui aquele ano desportivo foi um desastre, só perdi e não tenho a certeza de estar completamente perdoado. Quero com isto também dizer que o desporto é, sem dúvida, uma das melhores formas de “falar ao coração dos jovens” como pede o Papa Francisco. Importa é saber como fazer esse apelo.
Em suma, o atrás exposto tem um único propósito: preparar o caminho que eu gostava me pudesse levar até aos leitores. Revelei os meus medos e as minhas fraquezas, dei a conhecer pecados que cometi e por isso sinto-me mais leve, confiante e muito animado com o desafio.
Gostava de ao longo de 2018 tratar aqui alguns temas da cultura desportiva que motivem a curiosidade dos leitores, temas que são para mim uma espécie de “hot topics” do desporto atual: o futuro dos desportos e a importância da tecnologia na sua evolução, o papel dos emigrantes atletas para o desenvolvimento desportivo das nações, a relevância da genética na procura do atleta perfeito, entre outros. Difícil será trata-los como simplicidade e competência. Peço por isso a Deus que me ajude e me inspire.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.