Há cerca de seis anos, quando me preparava para entrar na Companhia de Jesus e começar este caminho para o sacerdócio, fui surpreendido com o facto de que teria de pedir para entrar no noviciado. Não sei bem porque me surpreendi, mas na verdade não era um procedimento esperado no meio de todo meu altruísmo de doar a vida – pedir para dar?
Porém, com o tempo, tenho vindo a refletir acerca deste primeiro pedido que dá início à possibilidade de cada jesuíta viver como homem consagrado a Deus na Companhia. Porquê pedir para entrar? Era a pergunta relativamente à Companhia, mas anterior a esta habitava-me uma outra: Porquê pedir a Deus? Esta era a pergunta central que movia a minha inquietação. Se Deus é o primeiro interessado e disposto a dar aquilo de que precisamos, porque tem o ser humano de pedir o que quer que seja a este Deus que o conhece melhor do que ele mesmo e o Ama mais do que ninguém?
Na verdade, não sei. E, de facto, assumo que toda a temática do pedido desabrocha em mim um mistério que anima o meu percurso espiritual. Contudo, tenho experimentado que através do pedido me vou transformando pouco a pouco como responsável da minha necessidade. Se, sem o ato concreto de pedir, existe uma possibilidade de algo que deveria precisar, ou de algo que poderia querer; com o ato de pedir, esta possibilidade encarna numa realidade intimamente objetiva – quero ou preciso. De outra maneira, aceitar-se-ia, ainda que de boa vontade, aquilo que viesse como acréscimo (que, se calhar, até se precisava).
O pedido aparece assim, como um qualquer tipo de apropriação da necessidade ou da vontade. Um fazê-la minha, na minha realidade concreta, segundo a minha condição, em mim e não numa possibilidade de mim.
O pedido de entrada no noviciado, neste sentido, além de proporcionar o auto-descentramento necessário ao candidato à Companhia e de dar à mesma a possibilidade real de não o aceitar, pode perceber-se como uma consciencialização e consequente apropriação da decisão tomada.
Ainda assim, no que diz respeito à comunidade de fé, a questão do pedido parece tomar uma nova forma. Porquê pedir pelos outros? Qual o sentido da oração de intercessão diante do Deus omnisciente e infinitamente amoroso? Não quererá Deus o bem da minha irmã e do meu irmão mais do que eu?
Mais uma vez, não sei. Mas ajuda-me a olhar esta intercessão como reflexo da profundidade mais bela da comunhão cristã – a unificação total dos filhos de Deus. Como diz o místico polaco Angelus Silesius «Deus Pai só tem um Filho, e este Filho somos todos nós em Cristo»[1]. Visto deste modo, o percurso espiritual é uma busca daquilo que é a essência de Cristo, e o pedido de intercessão expressa a mais profunda consciência desta filiação una. Isto porque realiza a ação humana mais próxima e mais capaz do Mistério divino, porque distancia o ser espiritual da tendência individualista da sua auto-suficiência. Sobre esta perspectiva poderemos degustar, de um modo algo surpreendente o que Jesus diz nas Bem Aventuranças “Felizes os pobres em espírito, porque deles é o Reino do Céu”[2] e purificar o nosso esforço espiritual no ato humilde de se submeter à necessidade global, pedindo.
O mundo está cansado de palavras
Por isso eu dou-te poesia
Porque nada revela melhor o humano do ser
Que a capacidade de amar
Isto é deixar precipitar as lágrimas da necessidade
E sentar-me com o olhar estendido
Junto de ti
Abraçar o frio dos afastamentos e da rejeição das palmas
Para só me deixar ferir por ti
É assim que eu quero viver
Ferir-me por ti
Não ser capaz de sacudir as ondas que rebentam no meu coração
Assumir o fracasso das palavras gastas
Esperar deixando-me olhar por ti
E pedir-te
Por favor.
Dizer isto significa dizer-te
Que esqueço os meus pés que suportam o chão
Que quero dançar com a saia da tua gentileza
Que as profundezas dos meus desejos já não me saciam o abandono e
Que preciso de ti
Ou antes
Que a poesia da tua dádiva me exige a mim
Discretamente
Sem que eu sequer me lembre de outra coisa
Que apenas o amor se basta a si mesmo
Que o herói não tem qualquer lugar nestes cantos
Nem a heroicidade no precisar de ti
Lembro-me desse momento em que com os cotovelos na mesa me deixava olhar por ti
Porque aquele olhar não eram só olhos
E ainda me lembro onde deixava os cotovelos enquanto ali não havia palavras.
Enquanto o amor era silêncio, uma tábua de madeira por envernizar, um movimento singelo, uma memória recatada…
Enquanto o amor era amor.
[1] Angelus Silesius, Peregrino Querubínico, p. 2.
[2] Mt 5, 3.
fotografia de Jon Tyson – Unsplash
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.