O último poeta do violino

O meu último encontro com Ivry Gitlis foi no ano de 2015 em Lisboa, na altura com 92 anos de idade; tinha algumas dificuldades de locomoção, mas sempre acompanhado pelo seu inseparável violino.

Este artigo é dedicado ao último dos grandes violinistas, considerado por alguns o “dinossauro dos violinistas”, uma lenda viva com 95 anos. Refiro-me a Ivry Gitlis, homem detentor de uma criatividade e originalidade verdadeiramente invulgares. O seu estilo e as suas interpretações são inconfundíveis; a música que emana do seu violino, tem o cunho da sua personalidade, amplifica e reflecte o que a cada momento lhe vai na alma. Um mago do violino. A dimensão da sua expressividade, dificilmente se consegue descrever.

Foi distinguido com o grau de Embaixador da Boa Vontade da UNESCO (Goodwill Ambassador). Apresentou-se como solista com as orquestras mais importantes do mundo: Filarmónica de Londres, Filarmónica de Berlim, Filarmónica de Viena, Filarmónica de Nova York, Orquestra de Philadelphia, Filarmónica de Israel, entre outras.

Ivry vive há mais de seis décadas na cidade de Paris. Nasceu em Haifa, Israel, no ano de 1922, filho de pais judeus.

Recebeu o seu primeiro violino com a idade de cinco anos. Iniciou os seus estudos com Mira Ben-Ami e aos oito anos recebeu ensinamentos do grande violinista Bronisław Huberman. Perante o talento do pequeno Ivry, Huberman lançou uma campanha de fundraising para que o pudessem enviar para Paris. Paris era na época uma das grandes capitais da música e um ponto de encontro dos grandes violinistas.

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Ivry Gitlis com oito anos de idade.

Em 1933 chegou com a sua mãe a Paris. Demorou pouco tempo até que fosse apresentado aos dois grandes nomes do mundo do violino que residiam em França, George Enescu e Jacques Thibaud. Licenciou-se no Conservatório de Paris em 1935. Entre 1938 e 1940 estudou com outro grande pedagogo, o violinista Carl Flesch.

Durante a segunda guerra mundial foi para Londres onde inicialmente trabalhou numa fábrica de material de guerra. Posteriormente foi integrado no corpo de artistas do exército britânico. Realizou inúmeros concertos em fábricas, para os soldados das tropas aliadas. Terminada a guerra, iniciou a sua carreira de violinista, num concerto com a Orquestra Filarmónica de Londres. Posteriormente tocou com a orquestra da BBC e com todas as principais orquestras da Grã Bretanha.

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Em 1974 com o famoso bailarino Rudolf Nureyev.

Seis anos após a queda de Hitler, os judeus ainda eram mal vistos em França e apesar disso, em 1951, Ivry Gitlis faz a sua estreia em Paris num recital que teve lugar na emblemática Salle Gaveau.

Um ano depois foi viver para os Estados Unidos, onde privou com um dos maiores violinistas de todos os tempos, Jascha Heifetz. Nos Estados Unidos realizou várias tournées com algumas das mais prestigiadas orquestras, entre elas a Orquestra de Filadélfia e a Orquestra Filarmónica de Nova York.

Regressa à Europa em 1954. Grava os principais concertos para violino e orquestra: Berg, Tchaikovsky, Mendelssohn, Stravinsky, Bruch, Bartók e Sibelius. A sua gravação do concerto de Alban Berg, recebeu nesse mesmo ano uma das maiores distinções do mundo discográfico, o Grand Prix du Disque. Em 1955, a sua gravação do 2º concerto de Bartók, foi distinguida como o melhor disco do ano pelo New York Herald Tribune.

Foi convidado por Yoko Ono, companheira do famoso John Lennon, para participar no concerto/filme The Rolling Stones Rock and Roll Circus. Privou com John Lennon e com os membros da banda The Rolling Stones.

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Com Yoko Ono e John Lennon em 1968.

Em 1972 fundou o Festival de Vence, com o objectivo de aproximar a música e a cultura aos mais jovens e aos mais desfavorecidos.

Nos anos oitenta, ao serviço da UNESCO, promoveu a educação, a cultura, a paz e a tolerância.

Durante a sua carreira, Ivry Gitlis tocou e foi proprietário de vários instrumentos históricos. O seu primeiro violino já como profissional, foi um Giovanni Battista Rogeri datado de 1699. O violino de Antonio Stradivari “O canto do Cisne” de 1737, e o Guarneri del Gesù “Ysaye” foram dois outros instrumentos que passaram pelas suas mãos. O seu violino actual é um Antonio Stradivari, o “Sancy” de 1713.

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Em 1982 com Pinchas Zukerman, Zuben Metha, Issac Stern e Shlomo Mintz.

É prática corrente atribuir uma denominação aos violinos históricos; normalmente recebem o nome de um proprietário célebre ou de uma característica especial. Consta que o “O canto do Cisne” recebeu a sua denominação por ter sido o último instrumento construído por Stradivari. A expressão canto do cisne foi muitas vezes utilizada para denominar a última e mais importante obra de um artista; nela transparece a raridade do seu talento no último instante da sua vida. Antigamente acreditava-se que o cisne emitia um melodioso canto nos momentos que antecediam a sua morte. O Guarneri del Gesù “Ysaye” pertenceu ao grande violinista belga Eugène Ysaye. O Stradivari “Sancy” teve como primeiros proprietários a família Leloup de Sancy da região francesa de Auvergne.

Muitos foram os compositores que se fascinaram com a criatividade e com a sonoridade de Ivry Giltis. René Leibowitz dedicou-lhe o seu concerto para violino, Bruno Maderna compôs uma obra intitulada “Pièce pour Ivry”, Roman Haubenstock-Ramati escreveu especialmente para Ivry “Sequences” para violino e orquestra. Giltis fez a estreia da obra “Mykka(s)” de Iannis Xenakis e Charles Harold Bernstein inspirou-se nele para escrever a “Rhapsodie Israélienne” e a “Romantic Suite”.

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1999, concerto no Japão com a pianista Martha Argerich.

Também sou violinista, e o acaso levou-me ao encontro de Gitlis e dos seus ensinamentos durante o período em que residi em Paris (1989/1994). Gitlis é um homem sem preconceitos, que preza a liberdade de expressão; os seus lemas são a inspiração e criatividade. Nos anos noventa, foi com o seu Stradivari tocar para as tribos que vivem nas selvas de África. Mencionava que tocar violino é uma forma de respirar.

Em algumas ocasiões tive aulas no seu apartamento situado em Paris, na zona de St. Germain-des-Prés. Relembro um apartamento extremamente desordenado, onde se acumulavam pilhas de objetos e de memórias de uma vida cheia. O seu local de lazer predileto era o Café de Flore, que frequentava com regularidade, um espaço cheio de história, por onde passaram grandes ícones da cultura como Jean-Paul Sartre, Albert Camus ou Pablo Picasso.

O meu último encontro com Ivry Gitlis foi no ano de 2015 em Lisboa, na altura com 92 anos de idade; tinha algumas dificuldades de locomoção, mas sempre acompanhado pelo seu inseparável violino. Segundo tenho conhecimento, ainda hoje continua a tocar, demonstração da sua permanente dedicação aos valores que sempre nortearam a sua vida, a música e o seu violino.

“Caros jovens colegas da geração em ascensão, por favor, tenham a coragem de serem vocês mesmos, corram riscos e não sejam cópias de outras pessoas…Ouçam o vosso coração e o vosso espírito…” (Ivry Gitlis, Janeiro de 2007)

 

Link’s sobre Ivry Gitlis:

Moszkowski a “Guitarre” e Albeniz “Malagena”

https://www.youtube.com/watch?v=fxGSlpVizak

2017 Tchaikovsky Gitlis e Yuja Wang

https://www.youtube.com/watch?v=dnQFtEaRo_4

Gitlis em África

https://www.youtube.com/watch?v=-x9cREiurRE

O Stradivari de Gitlis

https://tarisio.com/news/ivry-gitlis-sancy-stradivari-film/

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.