Certo dia, um companheiro jesuíta apontou uma inscrição em basco e disse-me: “aposto que não sabes o que está ali escrito”. Estávamos na Capela da Conversão, no solar dos Loiola, e numa das traves de madeira podia ler-se: “Hemen Jainkoaganatu zen Iñigo Loiolakoa”.
De facto, não sabia, pois a língua basca é uma das muitas artes deste mundo na qual sou ignorante. Contudo, junto a esta frase, uma outra esperava os meus olhos: “Aquí se entregó a Dios Iñigo de Loyola”. Esta sim, eu compreendia… mas as frases teriam de ter sentidos forçosamente diferentes.
Olhei então este meu amigo como quem aguarda resposta. Arriscámos um compasso de silêncio. E, como quem revela um segredo, ele diz-me: “Aqui Deus ganhou para si Inácio de Loyola”.
“Aqui Deus ganhou para si Inácio de Loyola” – repeti eu, timidamente. E tal como como uma bala de canhão destroçou as pernas e os sonhos de Inácio, esta frase estilhaçou o que eu pensava que sabia sobre Inácio.
“Aqui Deus ganhou para si Inácio de Loyola”. Como é que Deus, o nosso Deus, o Deus que é amor, o Deus que não se impõe, pode ganhar alguém para si? Como é que um Deus que morre na cruz vence sobre alguém?
Deus, o nosso Deus, o Deus que é amor, somente vence quando o outro se deixa derrotar pelo seu amor.
Somente deixando-se derrotar pelo amor que Deus é, é que Inácio se torna dócil aos apelos do Espírito.
Muitas vezes, demasiadas vezes, imaginei que seguir Cristo fosse, acima de tudo, uma oblação. Contudo, para se oferecer, há que deixar-se derrotar pelo amor de Deus. Naqueles longos meses de convalescença em Loiola, Inácio começa a deixar-se derrotar pelo amor de Deus. E nunca mais cessou de o fazer.
Nos nossos pequenos egoísmos e invejas, nas nossas vontades de poder e desejos de honra, nas nossas vácuas obsessões pelo prazer e pelo mais cómodo, o que fazemos é tornar-nos obstáculo e impedimento ao amor libertador de Deus. Para vencer sobre tudo isto, uma só coisa é necessária: deixar-se derrotar pelo amor de Deus.
Quando nos deixamos derrotar pelo amor de Deus, entramos no profundo mistério que ordena e dá sentido à Criação de Deus: bênção e perdão. É para este mistério que o Génesis nos pretende alertar. Inácio é alguém que deseja deixar de resistir ao amor criador, que reconhece a bênção e o perdão, e quer-se tornar, ele mesmo, bênção e perdão.
Larguemos os muitos artifícios que protegem a nossa alma do amor de Deus. Despojemo-nos da tralha, mesmo espiritual, que vamos acumulando ao longo dos tempos. De coração cheio, recordemos constantemente que uma só coisa é necessária para alcançar a vida plena: deixar-se, em todo o lugar e momento, derrotar pelo amor de Deus.
Fotografia: Jesuítas de Espanha
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.