Os debates sobre as políticas de fronteira fazem parte, de forma nuclear, da nova agenda social. Os novos fluxos populacionais, no quadro das dinâmicas globais que descrevem a nossa situação presente, trouxeram para o centro dos debates públicos as figuras do «estrangeiro», do «imigrante» e do «refugiado». Falo de figuras, porque não se trata apenas de demografia, no seu sentido material. As discussões sobre estes temas remetem também para o plano da elaboração simbólica destas figuras.
Quando nas últimas décadas do século XX, se procurava uma ordem simbólica para pensar a Europa para além da dureza das fronteiras das nações, era frequente o apelo à memória da perseguição e extermínio dos judeus, no curso do expansionismo nazi.
Quando nas últimas décadas do século XX, se procurava uma ordem simbólica para pensar a Europa para além da dureza das fronteiras das nações, era frequente o apelo à memória da perseguição e extermínio dos judeus, no curso do expansionismo nazi. Esses debates colocaram a questão da vítima no centro da cultura. No quadro desta reflexão política, a Shoah era apresentada frequentemente como imagem da massificação trágica de um judaísmo moderno organizado segundo o individualismo da cidadania. Deportados, os judeus viram-se privados de comunidade nacional, portanto de cidadania, e ao mesmo tempo descobriram-se reunidos coletivamente em campos de concentração, oriundos de diferentes partes da Europa, como se fossem uma nação translocal dentro do espaço europeu. No plano mais geral da cultura europeia, é significativo que seja no contexto da identificação dos crimes nazis que esta cultura aprofunde a ideia de “crime contra a humanidade”, representação que implica um conceito de justiça que ultrapassa os limites das identidades nacionais e regionais.
A Europa já teve de repensar o futuro da sua unidade a partir de contextos políticos diversos. Um dos momentos mais desafiantes aconteceu, precisamente, no momento em que se afirmavam particularismos regionais e locais, durante muito tempo silenciados pelas dinâmicas de desenvolvimento nacional e pela constituição de dois blocos antagonistas. Depois da falência dos mecanismos da “guerra fria” e do esgotamento da política dos dois blocos ergueu-se um mundo policêntrico, onde as diferenças ideológicas recuaram perante a renovada relevância dos substratos culturais. Esses acontecimentos vinham recordar que a mais decisiva diferença cultural pode não ser alimentada pela língua, como pretendeu certo nacionalismo romântico, mas pelo substrato religioso-cultural. Neste sentido, Europa subsistia adjetivada: Europa de Leste, Europa latina, Europa nórdica, Europa anglo-saxónica, Europa central, Europa bizantino-ortodoxa, Europa católica, Europa protestante, etc.
Nos momentos mais difíceis, em particular os de recessão económica, proliferam redes de solidariedade defensiva que, por vezes, respondem com muita violência à proximidade do “outro”.
Os diferentes ciclos migratórios, com alguns pontos críticos, como o tempo que vivemos, densificaram as preocupações. Em certa medida, a Europa descobre-se na situação da América do século XX, constituída por particularismos culturais e atravessada por vagas migratórias. Multiplicam os discursos da tolerância, as reivindicações de reconhecimento por parte das minorias, mas também as estratégias de reforço das identidades perante o medo da dissolução social. Nos momentos mais difíceis, em particular os de recessão económica, proliferam redes de solidariedade defensiva que, por vezes, respondem com muita violência à proximidade do “outro”.
O momento histórico presente exige que a Europa volte a confrontar-se com a pergunta: o que é uma fronteira? Na sua história recente, a Europa conheceu um processo histórico de abertura das fronteiras, fenómeno que nos fez abandonar a referência dura à “linha-fronteira” , abrindo novas possibilidades para as práticas da “zona-fronteira”. Sob o ponto de vista antropológico, é hoje importante estudar os mitos e as práticas da “linha”, mas também as representações e as práticas da “zona”, como lugar tanto de fratura como de encontro de culturas. Nesta situação, a “fronteira” surge não como um posto de defesa, mas como um espaço de integração. A resposta à pergunta “o que é uma fronteira?”, exige uma forte mobilização cultural. Esta não é uma pergunta apenas para os políticos. É uma pergunta para os poetas e outros criadores (José Tolentino Mendonça, no seu último livro de poesia, «Teoria da fronteira», respondeu a este desafio). É uma pergunta para as Igrejas cristãs, uma das mais importantes redes dentro do tecido europeu. Quando o Papa Francisco desafiou as diferentes comunidades católicas a tomar parte na imensa tarefa de acolhimento dos novos refugiados, tornava evidente a observação de que, nesta nova cultura de cidadania, é necessário reativar todas as redes de acolhimento que tecem a malha social.
A resposta à pergunta “o que é uma fronteira?”, exige uma forte mobilização cultural. Esta não é uma pergunta apenas para os políticos. É uma pergunta para os poetas e outros criadores (José Tolentino Mendonça, no seu último livro de poesia, «Teoria da fronteira», respondeu a este desafio). É uma pergunta para as Igrejas cristãs, uma das mais importantes redes dentro do tecido europeu.
Vale a pena recordar que a disseminação, ou diáspora, como situação cultural, faz parte do ADN da memória judaica e cristã. O termo “diáspora” designou primeiramente a dispersão dos judeus, a partir do séc. VIII a. C., e a sua implantação na Assíria, na Babilónia, no Egipto e um pouco por toda a bacia do Mediterrâneo. Esta situação produziu profundas alterações no judaísmo, porque a diáspora ou o exílio convocam a fé judaica para uma outra relação com o espaço: a esperança judaica continua a referir-se a um centro, Jerusalém, mas todo o lugar pode agora ser terra da promessa. Também a Igreja dos discípulos de Jesus nasceu como diáspora, não apenas geograficamente (disseminada pelo Império Romano), mas também espiritualmente, pois é nessa situação que a Igreja se torna “sinal” – oferta de salvação a todas as nações). Encontramos ecos desta consciência na linguagem litúrgica que nos é transmitida pela arqueologia cristã: “Como este pão partido, disseminado pelas colinas, uma vez recolhido, se fez um, assim a tua Igreja seja reunida dos confins da terra no teu Reino” (Didachê 9, 4). Aliás, na Primeira Carta de Pedro, para designar os crentes ou estatuto das comunidades, em vez de “igreja”, são preferidos os termos “eleitos”, “estrangeiros”, “diáspora”. Imaginar-se e construir-se a partir desta consciência poderá devolver às Igrejas essa qualidade que as descreve como lugar de hospitalidade. A Epístola aos Hebreus deixou-nos o aviso. É necessário estar atento ao estrangeiro – até porque ele pode ser um anjo de Deus em trânsito (Heb 13, 2).
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.