O que é, e não é, a realeza de Cristo

‘No próximo sábado, a nossa equipa de futebol paroquial joga contra a paróquia vizinha. Contamos com o vosso apoio para derrotar Cristo-Rei!’.

Com a solenidade de Cristo-Rei, conclui-se o ano litúrgico, de modo análogo a como a segunda vinda de Jesus de Nazaré irá pôr termo à História. Por isso, nestes últimos dias do ano litúrgico, a liturgia da Palavra é rica em referências apocalípticas, que antecipam, de algum modo, o Advento: a recordação da encarnação do Verbo prepara-nos para a sua manifestação gloriosa, no fim dos tempos.

A realeza de Cristo acompanha toda a sua vida terrena e, de algum modo, precede-a. Com efeito, pela sua linhagem real e pela realeza de que estava investido o prometido Messias, Jesus Cristo nasce Rei e, por isso, recém-nascido é perseguido por Herodes que, temendo ser destronado, Lhe quer dar morte. Na paixão, a realeza de Jesus de Nazaré faz-se também presente, nomeadamente no letreiro afixado na Cruz: Jesus de Nazaré, Rei dos Judeus. Mas a principal manifestação da sua realeza acontecerá por ocasião da sua segunda vinda, que não será na humildade do seu nascimento em Belém, ou da sua morte na Cruz, mas no poder e majestade da sua realeza universal.

Os contemporâneos de Jesus esperavam um Messias que fosse um chefe político, que libertasse o povo judeu da dominação romana, mas Cristo nunca permitiu que à sua missão redentora fosse dada essa interpretação política. Vezes houve em que as multidões, maravilhadas pelos seus milagres, O quiseram aclamar como rei, mas Ele nunca consentiu que a sua missão salvífica fosse reduzida a uma mera aventura política. Essa foi, aliás, uma das tentações a que foi submetido no termo dos quarenta dias de jejum e oração no deserto, e que Ele rejeitou liminarmente (Mt 4, 8-10). Também os seus mais próximos colaboradores, os doze apóstolos, sonhavam com um reino terreno, cujos melhores lugares ambicionavam. Mesmo depois da paixão, morte e ressurreição do Mestre, um dos seus discípulos ainda lhe perguntou se era então que ia, finalmente, estabelecer o prometido e tão desejado reino (At 1, 6).

A festa da realeza de Cristo parece sugerir que os cristãos se devem unir na realização de um projecto político global que, a partir dos princípios evangélicos, estabeleça no mundo o reinado de Cristo. Ao longo dos dois mil anos da história da Igreja, não faltaram fiéis que, de uma forma ou outra, quiseram traduzir o Evangelho num programa político. É curioso que esta recorrente tentação tanto suscitou forças políticas de extrema-direita, como os Guerrilheiros de Cristo-Rei na vizinha Espanha, como esteve na origem de grupos de extrema-esquerda na América do Sul, afectos à marxista teologia da libertação.
Uns e outros erram, contudo, nesse seu empenho em dar um carácter político-partidário à doutrina do Evangelho, esquecendo que Jesus de Nazaré, não obstante a ocupação da sua terra por um exército estrangeiro, nunca se envolveu em lutas políticas, nem sequer em prol da independência e tradições da sua pátria. Podia, certamente, tê-lo feito, mas quis deixar um testemunho de total dedicação ao próximo através da oração e da pregação da Palavra de Deus, que os seus ministros devem seguir, como aliás entenderam e praticaram os seus doze primeiros apóstolos.

Os cristãos leigos, pelo contrário, devem participar activamente na vida política das comunidades locais, regionais, nacionais e mundiais, sempre de uma forma coerente com os princípios cristãos, mas também respeitando a liberdade dos outros cristãos, dos fiéis de outras religiões, dos agnósticos e dos ateus que, legitimamente, defendem outras opções políticas para os mesmos problemas sociais.

 

Os cristãos leigos, pelo contrário, devem participar activamente na vida política das comunidades locais, regionais, nacionais e mundiais, sempre de uma forma coerente com os princípios cristãos, mas também respeitando a liberdade dos outros cristãos, dos fiéis de outras religiões, dos agnósticos e dos ateus que, legitimamente, defendem outras opções políticas para os mesmos problemas sociais. Pode haver forças políticas de inspiração cristã, desde que não se atribuam o monopólio dos princípios evangélicos, nem pretendam impor as suas soluções a todos os que professam a mesma fé.

Mesmo que seja aceitável e até desejável, a participação de leigos católicos na vida política nacional e internacional, o caminho da evangelização não é nunca o do poder. Há quem sonhe ainda com um país católico nos seus governantes, nos seus legisladores, nos seus autarcas, nos seus juízes, professores e militares, como que reproduzindo o modelo histórico da antiga Cristandade, mas uma fé que se impõe de cima para baixo não corresponde à teoria e prática do Evangelho. Com efeito, o caminho da conversão não é o que desce pela pirâmide do poder, mas o que sobe dos corações às mais altas instituições nacionais e internacionais. Há um só caminho para a evangelização: a conversão dos corações. Um cristão verdadeiro catequizará a sua família, uma família católica contagiará naturalmente a sua fé a outras famílias, muitas famílias crentes cristianizarão uma cidade, uma região, um país. Quando todas as nações forem cristãs, porque o são os seus cidadãos, então será verdade o reino de Cristo na terra.

A realeza de Cristo não teve as manifestações públicas que alguns esperavam, mas Jesus de Nazaré nunca abdicou da sua majestade, que reivindicou diante de Pôncio Pilatos. Foi rei desde o seu nascimento até à sua morte mas, com o seu exemplo, quis ensinar que reinar é, sobretudo, servir. Por isso, o Filho de Deus não veio ao mundo para ser servido mas para servir (Mt 20, 28). Fazem um mal serviço a Cristo-Rei os que pretendem servir-se de Jesus de Nazaré, ou da sua Igreja, para alcançar o poder político ou satisfazer as suas ambições pessoais. Como aquele pároco que, muito empenhado no campeonato de futebol das paróquias da sua diocese, assim encareceu os seus paroquianos: ‘No próximo sábado, a nossa equipa de futebol paroquial joga contra a paróquia vizinha. Contamos com o vosso apoio para derrotar Cristo-Rei!’.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.