A escravidão de um povo. Uma criança que sobrevive a um genocídio e cresce junto da fonte do sofrimento dos seus irmãos, completamente alienado de tal coisa, até ao dia em que se torna insuportável. Caminha perdido pelo deserto, assume um rebanho à sua guarda e é, no final disto tudo, chamado pelo seu nome. A história de Moisés não é única (até porque espelha um pouco a vida de Cristo), mas tem tanto para nos ensinar. A sua suposta certeza no rumo da sua vida é posta em causa, e abala-o até ao fundo do seu ser. Transforma-o num mensageiro, um testemunho humilde do poder de Deus, um verdadeiro príncipe do Egito.
Podemos começar pelo Faraó. É conhecimento comum que, no antigo Egito, os faraós detinham poder absoluto sobre os Homens. Uma influência divina e inquestionável, sendo o espelho de toda essa força a opulência e grandiosidade das suas terras e do seu povo. Uma terra que produzia fruto no meio da seca do deserto, e enormes construções em pedra, quase inconcebíveis para a época. Serviam de estandarte para a divindade do povo egípcio e do seu líder. Mas como podiam surgir todas estas conquistas? Quem movia as pedras, os barcos, quem ceifava o trigo e amassava o pão? Os livros de história costumam mostrar-nos que, por detrás do poder absoluto, esconde-se um sofrimento incalculável. Os chamados “sacrifícios necessários” para a suposta glória de um povo à custa da exploração e eventual destruição de outro. Os hebreus, como muitos outros povos, eram essa gente. O trabalho à base do chicote, do calor e da fome. Na primeira parte do livro do Êxodo, podemos ler todo o relato da saída do Egito, e lá observamos um momento em particular, que resume o comportamento do Faraó: apesar do sofrimento que causa e apesar das pragas que assolam o Egito, o Faraó não cede, e não permite ao povo de Deus partir. Mesmo que esse sofrimento chegasse à sua porta com a última praga, a morte do primogénito, o povo hebreu foi perseguido por carros e espadas numa expressão clara de raiva e angústia do Faraó. Um rei dito “divino”, o líder de uma civilização sem igual, um ditador, que à custa do sangue dos inocentes, escreveu a sua história e a do seu povo.
E na outra margem do rio temos Moisés, que foi chamado pelo seu nome, uma expressão que nos é agora familiar. Mas porque haveria Deus chamar alguém como ele? O próprio Moisés o questiona: “Quem sou eu para ir ter com o Faraó e tirar os filhos de Israel do Egito?” (Ex 3, 11-12). Cresce na segurança e privilégio da família real do Egito, mata um homem, e decide fugir do seu crime. Imaginamos a divisão que abala o seu coração: a lealdade ao seu povo, ou à casa que o fez crescer. Deus coloca-o à prova, atribuindo-lhe a missão que nunca concebeu ser sua, a de confrontar o lugar e a gente que um dia chamou de casa, de família. É interessante reparar que, no seu encontro com Deus na sarça ardente, Moisés não questiona a presença de Deus, o que explica algo muito importante sobre a divisão entre ele e o Faraó: o valor da vida. Acreditarmos que a nossa vida vale mais do que a dos outros, desligando-nos de uma ligação à humanidade e a quem nos rodeia, leva ao sofrimento. Somos presa fácil para ilusões de ego e orgulho. Por outro lado, se abraçarmos o ideal de que o valor da vida está na humildade e na simplicidade, na capacidade de observar milagres no mais pequeno dos gestos, então aí está Deus. Sem uma entrega verdadeira a este ideal, nunca veremos, nem escutaremos, a presença e voz de Deus.
Acreditarmos que a nossa vida vale mais do que a dos outros, desligando-nos de uma ligação à humanidade e a quem nos rodeia, leva ao sofrimento. Somos presa fácil para ilusões de ego e orgulho. Por outro lado, se abraçarmos o ideal de que o valor da vida está na humildade e na simplicidade, na capacidade de observar milagres no mais pequeno dos gestos, então aí está Deus.
É claro que esta reflexão das personagens do Faraó e Moisés tem um outro lado da moeda, mais concretamente sobre o Faraó. Segundo o livro do Êxodo, aquilo que conhecemos dele é a sua sede de poder, o seu coração de pedra, e que o conflito de Moisés é com o segundo Faraó que o livro nos relata. Mas é importante contextualizar a vida destes dois Faraós, porque a sua realidade, diferente dos hebreus, é que não há outro Deus senão o próprio Faraó para o Egito, e como pode estar a divindade dos egípcios errada? Como pode falhar? O verdadeiro Deus não se abala pelas fraquezas dos Homens, mas o Faraó é apenas um homem, e por isso mesmo, erra. É consumido por várias inseguranças, porque não há maior expectativa que ser equiparado a uma figura divina. A grandiosidade do Egito não é algo trivial, é obrigatória, custe o que custar. Mas quando o seu primogénito morre, o Faraó clama de tristeza e permite os filhos de Israel partirem (Ex 12,30-32). Como pode este homem depois de todas as pragas, de tanto sofrimento e, da morte do seu primeiro filho, herdeiro do trono, não ceder? Deus prevê que esta seria a única forma de permitir a partida do seu povo, mas sabe que o combate não termina aqui. A humanidade do Faraó é posta à prova uma última vez, quando confrontado com a visão de perder os seus trabalhadores, os seus escravos, decide reunir o seu exército e perseguir os hebreus. Ele não podia deixar a sua linhagem falhar, permitir o fim de uma dinastia, aquilo que para o Faraó seria a sua maior derrota, e o fim do Egito. E no final, temos a derradeira demonstração das maravilhas que Deus opera através de Moisés e Aarão, irmão de Moisés, com a separação das águas do mar vermelho. O povo de Deus atravessa o impossível até à outra margem, e desfaz os egípcios que os perseguem nessas mesmas águas. “Israel viu a mão poderosa com que o Senhor atuou contra o Egito, o povo temeu o Senhor e acreditou nele e em Moisés, seu servo.” (Ex 14, 31).
Haja coragem para sermos como Moisés, para olharmos o céu e quem o habita e deixarmo-nos guiar.
Não pude deixar de refletir durante a minha escrita e reflexão prévia naquilo que acontece neste momento na Terra Santa, na casa de Jesus e do povo de Israel. Observamos à distância de um ecrã os horrores e atrocidades de uma guerra de perseguição, de vingança. Mais uma vez corre o sangue dos fracos e inocentes, dos pobres, dos explorados. Um “combate necessário”, um “sacrifício necessário”. E as lágrimas correm porque não há nada a fazer senão rezar. Temos de ser melhores do que isto. Temos a responsabilidade, o dever, de educar esta geração e as vindouras para o combate ao ódio e ao rancor, aos interesses daqueles que se julgam acima dos restantes homens e mulheres do mundo. Nutrir corações e mentes sensíveis e cheios de compaixão, capazes de procurar o abraço em vez das armas. Temos de ser diferentes do Faraó, porque de reis tiranos e messiânicos está cheia a história e o nosso mundo. Haja coragem para sermos como Moisés, para olharmos o céu e quem o habita e deixarmo-nos guiar. Haja coragem para deixar o seu povo partir, deixar a Palestina ser livre. Os verdadeiros Príncipes do Egito.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.