O primado da realidade

Será uma questão de tato, literalmente de ser tocados e de tocar, com a coragem, a inteligência e a paciência de quem se expõe ao Espírito a agir nos tempos e nos lugares, “o grande intérprete que conduz à verdade”.

No dia 19 de maio de 2022, os diretores das revistas culturais europeias da Companhia de Jesus, rede da qual a Brotéria faz parte, reuniram-se em audiência com o Papa Francisco, em Roma. Começando por declarar que não tinha um discurso preparado, convidou os presentes a que, de forma espontânea e livre, lhe colocassem questões. «Se dialogarmos, a nossa reunião será mais rica», disse Francisco. No sítio da Brotéria, o leitor poderá encontrar a transcrição integral desse diálogo, do qual o Ponto SJ fez eco.

Dos vários temas abordados – a guerra na Ucrânia e as relações com o Patriarca Ortodoxo de Moscovo, os sinais de renovação na Igreja Católica e as posições de rejeição do Concílio Vaticano II, a evangelização em países nórdicos já sem tradição religiosa, as tensões atuais na Igreja alemã e a relação da Igreja com os jovens – destaco um. Logo no início da conversa, sendo perguntado ao Papa Francisco qual seria o significado e a missão das revistas culturais da Companhia de Jesus, recordou um ponto que lhe é particularmente caro: a ligação à realidade, à experiência e às pessoas. «Com isto quero dizer que não basta comunicar ideias: não é suficiente. Importa comunicar ideias que provenham da experiência. Isto, para mim, é muito importante. As ideias devem resultar da experiência». Depois, acrescentou: «as ideias podem discutir-se. A discussão é algo bom, mas, para mim, não é suficiente. É a realidade humana que pode ser discernida. O discernimento é o que realmente conta», é o «discernimento que leva à ação». Porque, «quando se entra no mundo das puras ideias e nos afastamos da realidade, acaba-se no ridículo». Importa, por isso, «trabalhar sobre a realidade, que é sempre superior à ideia». É ela que toca, que comove e que põe em movimento. E, «se a realidade é escandalosa, melhor ainda».

Logo no início da conversa, sendo perguntado ao Papa Francisco qual seria o significado e a missão das revistas culturais da Companhia de Jesus, recordou um ponto que lhe é particularmente caro: a ligação à realidade, à experiência e às pessoas.

No documento programático do seu pontificado, A alegria do Evangelho (EG), de 2014, o Papa Francisco já tinha apresentado e desenvolvido esse mesmo princípio de que «a realidade é mais importante do que a ideia» (EG 231-233), juntamente com outros três primados: do tempo sobre o espaço («o tempo é superior ao espaço»), da unidade sobre o conflito («a unidade prevalece sobre o conflito»), do todo sobre a parte («o todo é superior à parte»). Em grande medida, estamos perante quatro linhas que desenham o quadro mental e orientam o modo de proceder do Papa Francisco. Em contacto atento, inteligente e discernido com a realidade, tal como se apresenta, para se deixar tocar por ela e a poder assinalar evangelicamente, é por entre essas quatro linhas, por vezes tortas ou com múltiplos nós, que procura discernir o direito da escrita de Deus e é com elas que procura que a Igreja teça hoje a sua missão, em movimento corajoso de saída, mesmo que sob o risco de se sujar.

O primado da realidade sobre a ideia não desqualifica de todo a necessidade de que as ações sejam iluminadas, as palavras interpretadas, as imagens explicadas. Se a fé não é uma teoria, não deixa de implicar e de abrir estradas ao pensamento. Se perdesse a razão perder-se-ia a si mesma. Afirmar que a “realidade é mais importante do que a ideia” não significa, por isso, negar a ideia, o conceito, o pensamento sistemático – se assim fosse, não haveria lugar para a teologia –, mas dirigir a atenção primeira para a realidade real, passando o pleonasmo, tal como se apresenta e se impõe, com o seu direito e os seus avessos, a sua complexidade e contradições, as suas particularidades e parcialidades, dinâmicas e tempos longos. Não se move, por isso, a partir de definições, declarações ou sínteses pré-estabelecidas de forma abstrata e rígida, nem se regula simplesmente pelo que seria suposto, devido, imaginado ou desejável. Afirma o Papa Francisco que é «ao serviço da captação, compreensão e condução da realidade» (EG 232) que devem estar as ideias e as elaborações conceptuais, e não o contrário. Trata-se de atenção à realidade (“captação”), de atitude de acolhimento (“compreensão”), de implicação nos processos de transformação (“condução”). Diferentes são as construções abstratas que ocultam ou que se edificam à margem ou mesmo à revelia da realidade – Francisco põe na mesma lista «os purismos angélicos, os totalitarismos do relativo, os nominalismos declaracionistas, os projetos mais formais que reais, os fundamentalismos anti-históricos, os éticos sem bondade, os intelectualismos sem sabedoria» (EG 231). Comentando os quatro princípios atrás referidos, a teóloga Stella Morra faz notar que estas são as construções que se realizam estabelecendo e confirmando um princípio. Declinam-no, depois, em geral, através de numa explicação. Por fim, corrigem a realidade onde ela não corresponde ao princípio (Deus não se cansa. A misericórdia como forma eclesial., AO: Braga, 2016, 167-173). Se virmos bem, é com este quadro mental que muitos, na Igreja, pensam a identidade eclesial, a tradição, a liturgia, a moral familiar e sexual, o ministério ordenado, etc. Tudo estaria claramente definido à partida. Bastaria conhecer – por isso, o esforço maior é posto na explicação e na aprendizagem –, deduzir, aplicar e corrigir a realidade que não se lhe conforma. A ideia, portanto, seria mais importante do que a realidade. Se a realidade não se conforma à ideia, força-se. Se resiste, é porque já está demasiado corrompida ou porque tem má vontade. Por isso, “seja anátema”.

Afirmar que a “realidade é mais importante do que a ideia” não significa, por isso, negar a ideia, o conceito, o pensamento sistemático – se assim fosse, não haveria lugar para a teologia –, mas dirigir a atenção primeira para a realidade real, passando o pleonasmo, tal como se apresenta e se impõe, com o seu direito e os seus avessos, a sua complexidade e contradições, as suas particularidades e parcialidades, dinâmicas e tempos longos.

O primado da realidade faz justiça tanto ao mistério da encarnação como à dimensão sacramental da realidade. Também nas palavras de Stella Morra, «se acreditamos na Encarnação, já não podemos ver alguma coisa sem nos lembrarmos que é habitada por Deus. Os irmãos, o mundo, a história são um modo – indireto – no qual Deus fala». Não encontramos, por isso, Deus em Si mesmo, mas, precisamente, nos irmãos, no mundo, na história, tal como são. A experiência que podemos fazer de Deus é sempre mediada pela realidade que se impõe. Esta, como diziam os antigos, é capaz de Deus: está à altura de O dizer e de mediar a Sua atuação. O Espírito, esse, «é o grande intérprete que conduz à verdade, é a ideia pensada e a palavra dita acerca da realidade. É o nome das coisas como elas são, não viciadas pelo meu desejo de controlo e pela minha possibilidade de manipular».

Cabe assumir a realidade e o mistério divino que age nela como critério, «com olhos que escutam», expressão usada pelo Papa Francisco na nota que enviou à La Civiltà Cattolica, em 2020, por ocasião do 170º aniversário dessa revista. Escutar bem o mundo para melhor escutar a Palavra de Deus e mais adequadamente a apresentar, assumindo o nome das coisas como elas são, o lugar real onde se está, os processos pessoais e culturais que atravessamos e nos atravessam, a matéria da vida e o corpo da história por onde passa o Espírito do Senhor Ressuscitado. Paralelamente, cabe assumir o critério «de uma Palavra já encarnada e sempre procurando encarnar-se» (EG 233). Como estará, então, Deus a agir na realidade e quais serão os sinais que os nossos tempos estarão a enviar à Igreja, através dos quais Deus lhe fala, e que lhe cabe, por isso, hospedar com abertura, descrever com atenção, interpretar com juízo reto, discernir em liberdade? Terá algo de bom e de necessário – de evangélico – a colher, por exemplo, da sensibilidade do nosso tempo à pluralidade e à diferença, da contestação da hierarquia dos sexos ou das lutas pela igualdade de género? Para onde poderão apontar os movimentos femininos e as gerações jovens? O que diz à Igreja a arte contemporânea, as inquietações existenciais de hoje, novas sedes e buscas espirituais? O que diz dela a ferida dos abusos sexuais, a falta de reconhecimento da pertinência da fé para a vida, as igrejas vazias? Como a interpelam as múltiplas ofensas à humanidade que partilhamos e à coesão social das nossas sociedades, à casa comum que habitamos, ao futuro que deixaremos em herança às gerações vindouras? Como poderá esta atitude de hospitalidade generosa e arriscada – o hóspede pode ser hostil, a proximidade tem os seus riscos – alargar, aprofundar, elevar a leitura que a Igreja faz do Evangelho? E a que releitura da tradição e a que exercício de tradução, talvez mais rico, mais completo, mais profundo, poderá conduzir, por exemplo, no campo das práticas e da participação litúrgica, das linguagens pastorais, da compreensão dos mistérios e dos ministérios, também do ministério ordenado, do exercício da autoridade, da organização eclesial?

Como estará, então, Deus a agir na realidade e quais serão os sinais que os nossos tempos estarão a enviar à Igreja, através dos quais Deus lhe fala, e que lhe cabe, por isso, hospedar com abertura, descrever com atenção, interpretar com juízo reto, discernir em liberdade?

Levar a sério o sublinhado do Papa Francisco de que a realidade é mais importante do que a ideia, sendo ela que se discerne em vista da ação, passará, em concreto, por não nos furtarmos à exigência de questões como estas, entre tantas outras – o caminho mais fácil costuma ser fazer de conta, ficar na superfície ou adiar, acusar a realidade, diminuir os outros, repetir frases feitas e insistir em práticas vazias. Será uma questão de tato, literalmente de ser tocados e de tocar, com a coragem, a inteligência e a paciência de quem se expõe ao Espírito a agir nos tempos e nos lugares, “o grande intérprete que conduz à verdade”. É a partir da realidade que o Espírito fala às Igrejas. À Igreja portuguesa, o que estará a querer dizer?

Juntamente com o grande custo pelas mudanças que a realidade presente pede à Igreja, mudanças inevitáveis e de fundo, podemos acreditar sem hesitação que lhe reserva um tempo particularmente favorável e um lugar bem situado para realizar as promessas que traz consigo desde os inícios.

Fotografia de Sabine van Straaten – Unsplash

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.