Morrer num combate heróico, contra tudo e contra todos, ou continuar a viver numa sociedade que não nos realiza enquanto pessoas? Será que não preferimos, nós também, a esperança de uma morte heróica, que nos estimula, em vez de aceitar as frustrações que muitos somos levados a viver? A maior doença dos radicalismos hoje emergentes talvez seja mesmo a de nos conduzir a esta aparente alternativa. Pois é ao julgar que ela é inevitável que muitos jovens franceses, e não só, se radicalizam hoje no fundamentalismo islâmico.
Um dos mais prestigiados cineastas franceses da atualidade, André Téchiné, já com 76 anos de idade, traz para a sétima arte este tema de enorme atualidade e bem mediático, muito embora nos incomode ao ponto de talvez já nos ser difícil confrontá-lo. Adieu à la nuit (Adeus à noite) inspira-se, ao que parece, na célebre recolha de testemunhos que o jornalista David Thomson reuniu em 2014 num livro intitulado Les français jihadistes.
A narrativa descreve o evoluir de várias relações: Muriel e o seu neto Alex, com a noiva deste e um amigo Íman à mistura. Para enorme alegria da avó, Alex vem passar alguns dias em sua casa, uma enorme propriedade, algures no sul de França. E é nesta atmosfera familiar que Muriel vai conhecendo melhor o seu neto. Escuta-o a rezar em árabe; é vítima das suas iras; deixa-se levar pelo esgrimir de argumentos contra uma ideologia que nunca pensou vir a ser defendida pelo seu neto; e ama-o apesar de tudo, muito embora sinta que o seu “pequeno Alex” de sempre já não é mesmo… A avó apercebe-se, assim progressivamente, que de uma conversão ao islão, na sua forma mais fundamentalista, se trata, já que Alex separa excessivamente a vida deste mundo da vida eterna, como se a primeira não tivesse valor algum, como se o destino dos “mártires” que combatem na Síria fosse uma “oportunidade” e uma “bênção”.
André Téchiné retrata a radicalização ideológica de um jovem que não é socialmente desfavorecido. Ficamos sem saber o porquê nem como se radicalizaram os três personagens: Alex, a sua noiva Lila e o jovem Íman Bilal, todos eles aparentemente bem integrados em sociedade. Certamente que o ideal e fulgor da juventude, contra o materialismo e o consumismo da sociedade moderna, jogam um papel importante nessa radicalização. Tal como a fragilidade psicológica de quem perde um parente próximo na adolescência, aliada ao perigo de quem se fecha no mundo virtual da Internet ao ponto de desenvolver uma vida paralela nas redes sociais. Mas tudo isso deixa por explicar o radicalismo daqueles personagens.
A beleza do filme não reside, pois, na explicação do fenómeno, mas antes na sua pura descrição. Ou seja, em vez de nos expor as causas da radicalização ideológica, Téchiné deixa que os personagens se manifestem, sobretudo, nas suas relações e afetos.
A beleza do filme não reside, pois, na explicação do fenómeno, mas antes na sua pura descrição. Ou seja, em vez de nos expor as causas da radicalização ideológica, Téchiné deixa que os personagens se manifestem, sobretudo, nas suas relações e afetos. A atriz Catherine Deneuve (com quem Téchiné já trabalhou em oito dos seus filmes e que interpreta neste a personagem da avó) afirma que se trata de um filme “intimista”. Trata-se, pois, da fragilidade que nos caracteriza enquanto indivíduos isolados em ideias ou nas nossas emoções e o quanto podemos ser e crescer com quem amamos. De facto, o desenvolvimento das relações entre parentes e amantes enriquece a narrativa de Téchiné, na medida em que nos leva a sentir o enorme contraste que existe entre dar a vida por uma ideologia e amar as pessoas concretas que conhecemos na intimidade da relação.
A narrativa mostra personagens que, por alienação ideológica, são capazes de fazer mal aos seus próximos, mas que nunca abandonam, apesar disso, gestos de ternura e de amor. Assim, ao narrar o que se faz por amor, e o que o amor de seres frágeis como nós pode realizar, Téchiné aponta para a cura, qual redenção, da alienação e polarização ideológica que parece distanciar hoje tantas pessoas num mundo fragmentado em grupos ou ideias sem comunhão. Que a verdadeira esperança possa nascer da proximidade de uma relação autêntica onde o amor acontece, eis a experiência que Adeus à noite nos proporciona.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.