Churchill – esse homem fatal – legou à posteridade uma caterva de frases e epigramas que o tornaram, dizem, o político mais citado da História. Entre a pertinência humorística e o humor pertinente, é rara a ocasião que não lhe tenha merecido uma sentença. Relembro uma comparação de Sir Winston: tentar manter boas relações com um comunista é como fazer festas a um crocodilo. Quando abre a boca, nunca sabemos se está a sorrir ou a preparar-se para nos comer.
A pilhéria ilustra o que Churchill sabia e testemunhara. Desde muito cedo exprimiu publicamente o seu desprezo pelo regime soviético e pelo comunismo. O seu mundo era outro, tudo aquilo o repugnava. Mas a derrota da Alemanha Nazi e do III Reich exigia pragmatismo. Ninguém discute a importância da tecnologia e poderio bélico norte-americanos, pelos quais Churchill lutou tenazmente, mas foi na “segunda frente”, a leste, que os milhões de soldados do Exército Vermelho impuseram à Wehrmacht as primeiras derrotas, precipitando o fim do conflito.
Por isso, negociou, reuniu, conferenciou – e, obviamente, bebeu em abundância – com Estaline. O avanço das tropas russas pela Europa de Leste até à Alemanha revelou-se trágico e acabou por determinar a política mundial nas décadas seguintes. O que Churchill percebeu e denunciou logo em 1946 num discurso onde surge a célebre referência à “cortina de ferro” que descera sobre a Europa.
Por razões que levariam demasiado tempo a explicar, o marxismo e a sua “concretização” soviética beneficiaram de uma bizarra complacência na maioria dos países da Europa Ocidental. Os intelectuais franceses do pós II Guerra – com Sarte à cabeça –, cuja influência se estendia muito para além da academia, não se importaram de aderir a um utopismo irracional e criminoso, comportando-se como fiéis – e prosélitos – de uma religião secular. O “ópio dos intelectuais” – apropriação irónica da expressão de Marx – exposto e dissecado com minúcia por Raymond Aron – uma voz solitária e lúcida – continuou a alimentar as fantasias daquelas cabeças bem-pensantes.
Os intelectuais franceses do pós II Guerra – com Sarte à cabeça –, cuja influência se estendia muito para além da academia, não se importaram de aderir a um utopismo irracional e criminoso, comportando-se como fiéis – e prosélitos – de uma religião secular.
Invocar o desconhecimento do terror devido à opacidade do regime soviético é um argumento puído e uma deprimente auto-ilusão. A mortandade e as deportações resultantes do processo de coletivização, e em particular o genocídio perpetrado através da fome na Ucrânia – Holodomor –, eram suficientemente conhecidos no Ocidente.
Em 1962, Aleksandr Soljenítsin publicara Um dia na vida de Ivan Deníssovitch, onde narra a vida de um prisioneiro, vítima da repressão estalinista, num campo de trabalho forçado situado no Cazaquistão. E no monumental O Arquipélago Gulag, editado na França em língua russa em 1973 e no ano seguinte em francês, descreve exaustivamente o complexo de campos de trabalhos forçados (gulag) que acabariam por se tornar campos de morte. No intervalo de publicação dessas duas obras, o historiador britânico Robert Conquest dá à estampa em 1968 The Great Terror – Stalin’s Purge of The Thirties, trabalho seminal sobre as purgas levadas a cabo por Estaline nos anos 30: execuções, torturas e deportações que envolveram cerca um milhão de pessoas. No Ocidente Europeu, porém, a fantasia opiácea continuava a ser mais forte do que a realidade. Já na China de Mao, entre 1958 e 1962, cerca de 45 milhões de pessoas morreram à fome ou vítimas de trabalho forçado ou tortura. Um detalhe.
Entre nós, a oposição ao Estado Novo confundiu-se, em grande medida, com a atividade clandestina do Partido Comunista Português (PCP). E por ali passaram – ainda que fugazmente – personalidades, como Mário Soares, que viriam mais tarde a marcar a democracia, tendo o PCP como principal antagonista. De resto, Cunhal, enquanto chefe do Partido, cultivou a política de evitar alianças com grupos ou forças oposicionistas. E quando destes se aproximava era com o objetivo de os apoucar ou dividir, levando-os, sempre que possível, ao desaparecimento – destino que coube em sorte ao Movimento de Unidade Democrática. O monopólio da oposição teria de caber ao PCP – e assim foi, de facto, até bastante tarde.
Apesar de à superfície aparentar alguma originalidade, o PCP nunca representou qualquer sarilho ou embaraço aos interesses do Partido Comunista da União Soviética (PCUS) e à linha definida nos gabinetes do Komintern. Rapidamente as determinações de Moscovo reverberavam na ação do Partido. Aliás, tendo apoiado em 1968 as reformas na Checoslováquia, implementadas por Dubček, o PCP logo arrepiou caminho demonstrando prontamente o apoio à invasão russa. No essencial, não havia desvios aos diktats do PCUS.
E se a obediência era óbvia, a cultura de brutalidade do regime soviético fazia também parte do PCP e de Cunhal. É proveitoso ler o que António Barreto escreve a este propósito em Três Retratos: Salazar, Cunhal, Soares:
“Mas não me custa acreditar que, se, por absurdo, tal se viesse a proporcionar [Mário Soares estar no governo do país e Salazar ainda vivo], Soares não o perseguiria, limitar-se-ia a deixá-lo acabar os seus dias algures na província. Que foi, em certo modo, o tratamento reservado para Cunhal: a reforma no sossego de um qualquer retiro. (…) Já com Cunhal, imagine-se especulativamente, tudo seria diferente. Ele sempre o disse, era necessário castigar os fascistas: políticos, militares, monopolistas, polícias e quem mais fosse. Cunhal nunca enganou ninguém: a sua cruel brutalidade era sincera. (…)”
Em Uma Longa Viagem com Vasco Pulido Valente, publicado este ano, resultado das conversas que João Céu e Silva manteve com Pulido Valente entre outubro de 2018 e janeiro 2020, as afirmações do falecido cronista são ainda mais claras. A propósito do 25 de novembro, e do apoio de Mário Soares e do PS a alguns grupos militares – onde pontificava Eanes – que se mostravam contra o PCP e o rumo da revolução, o jornalista pergunta ao entrevistado se aquela atuação tinha sido a única forma de Soares se salvar entre a confusão do Verão Quente. A resposta desassombrada de Vasco Pulido Valente: “Com certeza. O PCP teria acabado por o matar se não tem havido o 25 de Novembro”. Na dúvida sobre se a morte era metafórica, o autor questiona: “De o matar politicamente?”. Resposta: “Não, de o matar fisicamente.” Para logo assegurar: “Tenho a certeza”. Por ser instrutivo – além de um prazer – sugiro a leitura.
O 25 de Novembro, a derrota nas eleições para a Constituinte e a aprovação de uma Constituição democrática, a subsequente consolidação de uma democracia liberal, eliminaram a ameaça que o PCP constituía. A queda do Muro de Berlim e o colapso da URSS tornou-o – se é que já não era – um anacronismo. Manteve-se como singularidade, controlando sindicatos e o barulho na rua. Reduzido a dígitos menores nas eleições, evitou ainda assim o destino dos seus congéneres europeus que se extinguiram, mudaram de nome, foram absorvidos por outras forças ou simplesmente não têm apoio suficiente para garantir representação parlamentar.
Um ar de ominosa irrealidade museológica percorreu o país quando no mês passado, por ocasião dos 100 anos da fundação do PCP, a foice e o martelo foram hasteadas em várias cidades. E, claro está, houve marchas de celebração entusiasmadas por “jovens” que com a sua ignorância e analfabetismo asseguram a vitalidade de um partido que já morreu. Lamentavelmente, as festividades não mereceram grande consternação pública.
Mas a pouco mais de uma semana do 25 de Abril, talvez valha a pena lembrar que a liberdade e a democracia – com todas as suas imperfeições – foram conquistadas também contra o PCP.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.