Em adolescente, ouvi vezes sem conta a frase motivacional (?) «os jovens são o nosso futuro». Umas vezes era dita em tom de responsabilização, do estilo “vejam lá o que fazem”. Outras, pressentia-se uma certa frustração a respeito da sociedade; um subtil mas perceptível “não há nada a fazer: é preciso sangue fresco para mudar isto”. O que vou defender de modo sintético (e, sobretudo, provocador) nos próximos parágrafos é o seguinte: se é verdade que os jovens estão no centro das transformações sociais no ocidente e nelas desempenham um papel importante, não creio que o futuro mais desejável passe pela busca “da eterna juventude”, mas antes por uma reforma do modo de sermos adultos.
A juventude como classe
A “história da juventude” nas sociedades ocidentais contemporâneas tem bastantes nuances, consoante os países, naturalmente. Resumo, aqui, o percurso dos EUA que são, provavelmente, os maiores exportadores de “imaginários juvenis”.
Seria necessário começar por explicar o impacto profundo que os novos modelos de economia industrial e tecnológica tiveram no tecido social. A vida da população transformou-se a vários níveis. Por um lado, as condições de trabalho mudaram e os incentivos ao consumo aumentaram. Para crescer, a indústria produzia não apenas bens, mas também consumidores: os próprios trabalhadores.
Ao mesmo tempo, as cidades tornaram-se nos grandes centros populacionais, com mais possibilidades de trabalho, onde circulava mais dinheiro e onde se reinventavam as formas de entretenimento. Num novo contexto (urbano) e com novos hábitos (de trabalho e de lazer), as relações modificaram-se: homens e mulheres encontravam-se cada vez mais em territórios “neutros”, longe da tutela das instituições habituais (as famílias, as igrejas, as autoridades). Os espaços de diversão (teatros, cinemas e discotecas) serviram, assim, de palco para a criação de um novo modo de viver.
Os filhos das sucessivas explosões demográficas (em particular nos períodos de pós-guerra) já nascem em contextos bastante diferentes, apesar das persistentes desigualdades: homens e mulheres têm vidas profissionais ativas; as famílias têm maior poder económico e investem mais nas suas casas (cada vez mais apetrechadas de electrodomésticos); o investimento na educação dos filhos torna-se uma prioridade, com os níveis de escolaridade a disparar. Porém, não foram apenas os pais e as escolas a apostar nos jovens: a economia não tardou a fazê-lo, sobretudo através da indústria do entretenimento e tecnologia, do desporto e da moda. Com mesada no bolso e tempo livre, a juventude tornou-se num alvo apetecido do marketing.
Progressivamente, a voz dos jovens foi-se tornando cada vez mais audível na sociedade. As universidades, de acesso mais democrático (felizmente!), foram grandes promotoras de um discurso crítico jovem (por vezes mais habilitado que o dos próprios pais). Igualmente, no campo das artes populares, muitos jovens artistas foram porta-voz de um olhar crítico sobre as sociedades ocidentais. Sem surpresas, será nas cidades, nas universidades e nas artes que surgirão os mais ferozes (e jovens) protestos contra guerras e “tradições”.
Juventude: uma grande massa populacional; um grupo com gostos, interesses e hábitos próprios; um grupo com grande peso económico (seja ao nível dos orçamentos familiares e do Estado; seja ao nível da economia que se desenvolve à sua volta); uma voz cada vez mais relevante nas sociedades. Assim surgiu e se impôs uma nova classe social.
As múltiplas origens da vontade de mudar
Talvez faça parte da “genética da juventude” uma certa rebeldia. Vários psicólogos da adolescência mostraram que o processo de crescimento e de autonomização (identitária, intelectual e moral) pode passar por uma certa antagonização dos “pais”. Para se afirmar, o adolescente/ jovem procura destacar-se e distinguir-se dos seus: «eu não sou como eles».
Esse factor “genético” fará, sem dúvida, parte do fenómeno (bastante antigo) do chamado choque de gerações, sentido de maneira especial entre os anos 60-90 do século XX. Contudo, seria muitíssimo redutor dizer que as mudanças sociais contemporâneas são apenas fruto da irreverência dos jovens.
O desejo de transformação social foi um dos grandes motores dos últimos séculos: houve mudanças de regimes políticos, movidas pelo esforço de abolir sistemas de organização social que tendiam a cristalizar a sociedade (e certas injustiças de estimação); houve mudanças de postura a respeito da realidade física, com a procura de métodos racionais de verificação da validade das teorias e convicções; houve mudanças de paradigmas éticos, com uma tentativa de ultrapassar a moral das religiões.
Vamos encontrar este “protesto cultural” tanto nas artes quanto na economia: era preciso mudar. Nos anos ‘90, um anúncio publicitário de uma marca de whiskey resumia bem esta intuição: «a tradição já não é o que era». Debaixo da palavra “tradição” estava todo um sentimento de mal-estar a respeito de uma determinada postura existencial e social, marcada pela rigidez, falta de criatividade, medo de arriscar e autoritarismo.
David Bowie, um dos ícones da cultura juvenil do século passado, evocava precisamente esta visão negativa de tradição na sua música Starman (1972), através de uma imagem clara: um jovem esperava por algo de novo, na rádio e na TV, mas fazia-o clandestinamente, por saber de antemão que os seus pais não iriam compreender nem aceitar.
Curiosamente, esta imagem do “adulto rezingão” está bem presente nosso imaginário cultural português. Ficaram célebres, n’Os Lusíadas de Camões, os “velhos do Restelo”: perante os gestos aventureiros dos “mais novos”, mostram-se desconfiados e descontentes, confundem prudência com pessimismo conformista.
Portanto, ser jovem, tornou-se sinónimo de mudança, de estar do lado da novidade e da liberdade, com novos hábitos (e consumos), ao passo que ser adulto significaria ser-se “quadrado”, preso a tradições retrógradas (e, por vezes, injustas), intolerante à diferença e avesso à inovação.
A sociedade, para se transformar, precisa de repensar a “vida adulta”
É contra esta imagem de “adulto”, precisamente, que luta Peter Pan/ Robin Williams no filme Hook, de Steven Spielberg (1991). O filme apresenta-nos Peter Banning, um advogado de sucesso de tal maneira fixado no trabalho que não tem tempo para nada, a começar pela família. Um dia, ao chegar a casa com a esposa, depara-se com os sinais de um assalto. Para seu horror, percebe que os seus filhos foram raptados. Por quem? Por um misterioso Capitão Gancho/ Dustin Hoffman, dizia a nota de rapto.
A partir desse momento, Peter acabará por fazer uma viagem por dentro e por fora de si mesmo, rumo a essa terra longínqua das memórias da sua infância perdida e da sua consciência ferida de ter abandonado os seus filhos.
Moral da história: Peter esqueceu-se da sua “criança interior” e, por isso, perdeu-se do essencial da vida. Qual o remédio? Cultivar uma atitude jovial, recordar-se da sua infância para assim poder compreender e comunicar com os seus filhos pequenos, manter vivo o espírito de aventura e de “sã loucura”.
Tudo isso, penso eu, pode ter algo de inspirador. O filósofo Paul Ricoeur abordou a questão da tensão entre adultez e juventude a partir da noção de “ingenuidade”. Para alcançar uma adultez fresca e jovem, há que descobrir uma segunda ingenuidade. E explicava: em crianças, trepávamos às árvores, alheios à possibilidade de a gravidade nos poder trair. Mais tarde, as quedas da vida encarregar-se-ão de tentar roubar-nos a espontaneidade da infância: conhecemos “bem demais” o peso da gravidade. Claro está, isso pode tornar-nos pessimistas.
Contudo, para Ricoeur, a verdadeira adultez só se alcança no momento em que somos capazes de aliar prudência e risco. Ou seja, há que aprender a ser ingénuo e consciente. Mesmo sublinhando esta leitura luminosa, penso que é importante sublinhar dois riscos atuais que sobrevoam as nossas “nostalgias da juventude perdida”, por dois motivos principais:
(a) há uma tendência cultural a confundir juventude e felicidade, e isto faz-nos mal
Se o entretenimento tem algum valor simbólico, ele está em deixar-nos ver um pouco da alma do nosso tempo. A preponderância das imagens de “juventude”, no entretenimento, com corpos e gostos jovens, sugere que, para nós, o ideal da vida e felicidade humana está no “permanecer jovem”. Até que ponto é que esta postura nos ajuda a lidar com o envelhecimento e com a morte de forma natural e profunda? Até que ponto o elogio da juventude dá espaço ou celebra a sabedoria adquirida? Será mesmo verdade que os jovens têm o monopólio da criatividade? Será mesmo verdade que só sendo “para sempre jovens” poderemos ser felizes?
(b) há necessidade de reformar a sociedade, mas isso não passa por ser Peter Pan
O risco de reduzir o problema de Peter Banning (o Peter Pan esquecido) a uma questão individual de “manter viva a sua criança interior” está em ignorar os sinais óbvios de que ele não se tornou num workaholic sozinho. Há, de facto, uma forma de se ser adulto totalmente centrada no tríptico “agir, produzir, consumir” e na compulsão de manter uma agenda cheia. Ora, é esta forma de ser adulto gera “Peter Pans”: (1) nos mais jovens, gera ansiedade e falta de entusiasmo perante a engrenagem da sociedade adulta; (2) em muitos adultos, gera a procura de novos hábitos que ajudem a compensar (e anestesiar) o seu mal-estar face à rotina. Ora, esta imagem de ser adulto é o produto do nosso modelo de sociedade que, não obstante tantas coisas positivas, nos parece estar a devorar. Tornámo-nos “funcionários da vida”.
A minha tese é esta: o mito da eterna juventude, perpetuado pela nova “indústria da felicidade”, nos media, faz-nos mal. A solução não passa por querer “voltar atrás” ou por perpetuar hábitos adolescentes. Ao mesmo tempo, face aos sinais óbvios de fadiga afetiva e psicológica (individual e coletiva), é verdadeiramente urgente repensar o modo de ser adulto que subjaz nas nossas sociedades contemporâneas. Precisamos de pessoas criativas, mas também responsáveis e capazes de usar bem a sua autoridade; precisamos de pessoas alegres, mas com sabedoria de vida. A tensão entre trabalho e lazer, entre rotina de responsabilidade e espontaneidade de vida, entre frescura para mudar e sabedoria para ler o filão das coisas, o nosso gosto de sermos urbanos e a percepção de que precisamos de ser mais “verdes”: tudo isto está à espera de um novo modelo de sociedade. O que significa, para nós, uma vida adulta? Que modelo de sociedade seria necessário para promover essa adultez cheia de vida? Resta saber se já estamos tão “velhos” que nem conseguimos imaginar outra forma de vivermos como “crescidos”…
nota final
O objetivo deste texto não é, obviamente, o de gerar resmunguice [risos]. Hoje, mais do que nunca, parece-me que é urgente voltar a sonhar. Como adultos que não desistem de plantar árvores para trepar.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.