No interessante livro Travellers In The Third Reich: The Rise Of Fascism Through The Eyes Of Everyday People, Julia Boyd relata as impressões e experiências de viajantes de vária sorte: desde os vagamente anónimos até a celebridades que visitaram a Alemanha, e nalguns casos aí residiram, nas décadas de 20 e 30 do século passado. A curiosidade é óbvia: como é que estas pessoas comuns – embora nem todas o fossem – viram e interpretaram a ascensão de Hitler, do Partido Nazi e o fim da República de Weimar, sem beneficiarem do conhecimento que só a retrospetiva providencia?
Num notável trabalho de investigação, a autora consultou diários de meros turistas, de estudantes e académicos – entre os quais de Ji Xianlin, um brilhante intelectual chinês que se encontrava a elaborar uma tese de doutoramento em estudos de Sânscrito na Universidade de Heidelberga. Utilizou os testemunhos descritos nas cartas de adolescentes e jovens – na sua maioria britânicos e americanos – endereçadas a pais esperançados que a permanência dos filhos na pátria de Goethe e Wagner se revelasse decisiva na formação destes.
Além de muito material não publicado ou integrado em espólios privados, Julia Boyd recorreu ainda a livros de diplomatas experientes e jornalistas estrangeiros que ali desempenhavam as funções de correspondentes para os jornais dos respetivos países. A estes juntam-se os testemunhos de artistas, políticos, escritores – entre eles, o nobelizado norueguês Knut Hamsun, ardente admirador do Führer, Samuel Beckett (que também viria a ser vencedor do Nobel), ou Thomas Wolfe –, desportistas ou famosos bizarros como Charles Lindbergh, sobre quem, por uma razão (normalmente cultural) ou outra, a Alemanha exercia fascínio.
Mesmo que não se leve em conta os delíquios apaixonados de donzelas inglesas por Hitler e a pronta adesão de germanófilos atoleimados e dos idiotas úteis que todas as épocas produzem, a leitura de tantos e tão variados testemunhos só pode produzir inquietude. As arengas públicas de Hitler eram carregadas de ódio e anti-semitismo; a violência e repressão públicas de Judeus e inimigos políticos eram evidentes. A abertura de Dachau ocorreu poucas semanas depois de Hitler se ter tornado Chanceler e a famosa queima e proibição de livros teve lugar no mesmo ano de 1933. E as infames Leis de Nuremberga que, além do mais, privavam os Judeus da sua cidadania foram publicadas em 1935. E apesar de todos estes sinais (deixem passar o eufemismo), a que se somou em Novembro de 1938 a Kristallnacht, existiram até à última hora estrangeiros, de passagem ou residentes, capazes de asseverar que Hitler era um líder comprometido com a paz. E que se de facto haviam excessos – que por serem demasiados evidentes eram impossíveis de negar – tratava-se de algo temporário, pois certamente os Nazis adotariam uma postura mais civilizada.
Nos últimos anos, um pouco por toda a Europa, partidos com um discurso marcadamente racista, xenófobo, prenhes de um nacionalismo serôdio, adeptos de Estados musculados e com pouca estima pela noção de democracia liberal têm ganhado simpatia popular.
É errado analisar estes acontecimentos à luz de todo o conhecimento que temos hoje. Sobretudo numa época em que o anti-semitismo estava profundamente entranhado em todas as sociedades europeias e presente no discurso do dia-a-dia. Mas ainda assim, mas ainda assim, sem cairmos naquilo que pode ser um condenável presentismo histórico: os sinais estavam todos lá. E os séculos passados já tinham mostrado uma ignominiosa perseguição aos Judeus através de sucessivos pogroms.
Então o que é que falhou? Por que razão a condenação do nazismo não sucedeu mais cedo a nível internacional? Por que é que tantos estrangeiros se mostraram complacentes a descrever aquilo a que assistiram? Por que é que tantas pessoas não viram o que estava mesmo em frente delas? Não tenho, como é óbvio, a resposta a estas questões, que de resto têm motivado muitos historiadores a continuar a escrever sobre a Alemanha Nazi.
O famoso historiador inglês A. J. P. Taylor, que também escreveu sobre a Alemanha e a quem não faltava humor e ironia, chegou a dizer: “In my opinion we learn nothing from history except the infinite variety of men’s behavior. We study it, as we listen to music or read poetry, for pleasure, not for instruction“. Talvez haja razão na tirada de Taylor, a prova reside justamente na quantidade de vezes que as tragédias se repetem. Por outro lado, e embora nem sempre da maneira mais rigorosa, o que sucedeu acaba por se inscrever em maior ou menor grau na memória colectiva dos povos e condicionar a forma como países e indivíduos se comportam.
Nos últimos anos, um pouco por toda a Europa, partidos com um discurso marcadamente racista, xenófobo, prenhes de um nacionalismo serôdio, adeptos de Estados musculados e com pouca estima pela noção de democracia liberal têm ganhado simpatia popular. Este ganho materializa-se em votos e na consequente eleição de deputados. Os exemplos são conhecidos. E em Portugal, pela primeira vez desde que há eleições livres, foi eleito um deputado de um partido – o CHEGA – que partilha alguns dos atributos que acima elenquei.
Uma das grandes virtudes da Democracia é simultânea e ironicamente uma das suas maiores fragilidades: a pluralidade ou abertura. As instituições democráticas, como é o caso do Parlamento, conseguem albergar partidos e pessoas que abertamente, ou de forma enviesada, proclamam que o seu propósito é justamente destruir o mínimo denominador comum de um Estado Democrático: o respeito pelas liberdades individuais e o primado da lei.
E ainda que A.J.P. Taylor tenha razão e talvez não seja possível aprender nada com a História a não ser a infinite variety of men’s behavior, não deixa de ser reconfortante por ser uma vantajosa aprendizagem. Sabendo que os homens são capazes de se comportar da maneira mais indigna e vil possível para destruir todos os ganhos civilizacionais, então não há desculpa para que não estejamos atentos aos sinais que outros antes de nós não conseguiram – ou não quiseram – ver; para que saibamos ler nas entrelinhas e reconhecer o recrudescimento de males antigos ainda que com novas roupagens. Pois, nas palavras dessoutro inglês fatal, a Democracia é o pior regime que existe à exceção de todos os outros.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.