No ano letivo de 2015-16, a George Brown College (GBC) tornou-se na primeira universidade norte-americana a determinar para os próprios alunos a frequência obrigatória de uma formação em soft skills, criando para o efeito um curso chamado “Relações Sociais Bem-Sucedidas” (nota 1). À primeira vista, a designação do curso é opaca, talvez até um pouco enganadora, pois dá a ideia de ser uma formação destinada a treinar e a certificar as habilidades de socialização dos universitários, o que seria um desperdício de recursos, pois é sabido que para essa matéria nenhuma didática atinge tanto sucesso quanto o método da aprendizagem cooperativa não monitorizada. Talvez por esse motivo a GBC tenha alterado o nome do curso para “Habilidades Humanas” (nota 2), uma designação que se esvazia da conotação socializadora da sua predecessora, mas que mantém uma certa opacidade, a qual não sobrevive a um olhar mais atento, pois as duas expressões são, na verdade, bastante rigorosas.
O que levou os professores desta universidade de Toronto a determinarem a frequência obrigatória do curso de soft skills foram as queixas dos empregadores com os quais tinham parcerias de emprego para os seus alunos. Segundo os responsáveis das empresas, os alunos diplomados pela GBC estavam a chegar bem preparados do ponto de vista das habilidades técnicas exigidas pelas funções a desempenhar, mas não tão bem preparados do ponto de vista das competências pessoais e sociais. Como é evidente, este problema não era exclusivo dos alunos desta universidade. Sensivelmente na mesma altura, mas no outro lado da fronteira, Bruce Tulgman andou a perguntar a centenas de diretores de empresas dos Estados Unidos quão importante era para eles o domínio de soft skills por parte dos seus trabalhadores. A conclusão a que chegou confirma a decisão dos professores da GBC de tornarem obrigatória a frequência do curso: «The cliché is that people get hired because of their hard skills but get fired because of their soft skills» (nota 3). Como lugar-comum, esta descrição da realidade pode ter uma certa dimensão caricatural, mas não há dúvidas de que garantir trabalhadores com boas competências pessoais e sociais é, nos dias de hoje, considerado determinante para o sucesso das empresas e serviços. Aliás, é essa a visão que vemos refletida em relatórios sobre a empregabilidade atual e futura, como é o caso do 2019 Global Talent Trends Report (nota 4) , do LinkedIn, que aponta a falta de soft skills como a tendência chave que mais peso terá nos locais de trabalho, ou do The Future of Jobs Report 2018 (nota 5) , do Fórum Económico Mundial, em que é sublinhada a incontornável necessidade de dar formação em competências pessoais e sociais aos atuais e futuros trabalhadores. No que respeita ao domínio de soft skills, é caso para dizer que a procura supera largamente a oferta.
A conclusão a que chegou confirma a decisão dos professores da GBC de tornarem obrigatória a frequência do curso: «The cliché is that people get hired because of their hard skills but get fired because of their soft skills» 3. Como lugar-comum, esta descrição da realidade pode ter uma certa dimensão caricatural, mas não há dúvidas de que garantir trabalhadores com boas competências pessoais e sociais é, nos dias de hoje, considerado determinante para o sucesso das empresas e serviços.
Quando, em 1995, Daniel Goleman escreveu Inteligência Emocional, um livro que continua a ser uma referência para as propostas de desenvolvimento de soft skills, tinha como objetivo promover a reflexão sobre a importância que a educação devia dar ao trabalho sobre as habilidades não cognitivas, pois entendia que era através da alteração dos modelos educativos que se poderia conferir ao coeficiente emocional uma relevância condizente com o impacto que ele tem no nosso sucesso profissional.
A criação de um curso de soft skills por parte da GBC, a definição de áreas de competência como o “Relacionamento Interpessoal” e o “Desenvolvimento Pessoal e Autonomia” no Perfil dos Alunos à Saída da Escolaridade Obrigatória e os inúmeros planos de desenvolvimento de competências pessoais que as empresas propõem aos seus trabalhadores ilustram a resposta que está a ser dada à carência de soft skills identificada pelos empregadores. Estas propostas revelam, na linha do que pensou Goleman, uma visão estratégica que assenta no princípio de que o equilíbrio da balança da oferta e da procura passará pela educação e pela formação. Todavia, apesar de a assunção desta responsabilidade por parte dos agentes educativos ser a medida mais evidente, poderá não ter a eficácia esperada, pois o contexto em que é implementada é-lhe adverso.
Richard Almonte, um dos professores da GBC, aponta a diversidade social, o desenvolvimento tecnológico e as diferenças entre as gerações como os três principais motivos que subjazem ao desequilíbrio entre a oferta e a procura no mercado das competências pessoais e sociais. Os dois primeiros motivos dão conta de características do mundo atual que fazem com que as soft skills assumam agora um papel mais preponderante do que o que tinham no passado. A globalização e os fluxos migratórios, por exemplo, traduzem-se em relações laborais fortemente marcadas pela diversidade social, o que faz com que a capacidade de trabalhar com equipas multiculturais seja mais valorizada. Por seu lado, o desenvolvimento tecnológico tem proporcionado a automatização da indústria, criando as chamadas economias do conhecimento, cujos empregos exigem habilidades como a criatividade e a capacidade de resolver problemas, que eram menos importantes para os trabalhos assentes na manufaturação. Estes dois fatores alteraram de modo tão significativo e em tão pouco tempo os contextos laborais, que o The Future of Jobs Report 2018 antecipa um crescimento massivo de ações de «reskilling» e de «upskilling» para os trabalhadores de todas as áreas. Mas o terceiro motivo é de natureza diferente e é nele que encontramos os indícios do contexto adverso. A comparação das gerações atuais com as gerações anteriores aponta no sentido de nos estarmos a tornar menos hábeis no que diz respeito ao domínio das soft skills. Isto resulta em grande medida do facto de a sociedade ter vindo a assumir padrões de comportamento que minimizam os obstáculos que antes nos forçavam ao desenvolvimento de algumas competências pessoais. Vivemos numa sociedade da hiperproteção, pautada pelo resguardo cada vez mais alargado das bactérias que são próprias das infeções, o que limita o
fortalecimento dos anticorpos. Antes de avançar, sublinho o termo “hiperproteção”, para explicitamente excluir do âmbito deste contexto adverso quaisquer mecanismos de proteção de crianças que tenham sido criados para corrigir falhas na sociedade, como é o caso da proteção contra abusos e maus-tratos. A metáfora biológica adequa-se a esta clarificação: ficamos protegidos contra algumas doenças porque nos expomos a essas doenças, naturalmente ou através de vacinas, mas não ingerimos banha de porco à colherada para nos protegermos dos enfartes.
A comparação das gerações atuais com as gerações anteriores aponta no sentido de nos estarmos a tornar menos hábeis no que diz respeito ao domínio das soft skills. Isto resulta em grande medida do facto de a sociedade ter vindo a assumir padrões de comportamento que minimizam os obstáculos que antes nos forçavam ao desenvolvimento de algumas competências pessoais.
Jonathan Haidt e Greg Lukianoff, no impressionante The Coddling of the American Mind, descrevem uma sociedade que superprotege cada vez mais as crianças, o que tem levado à incapacidade de os jovens lidarem com frustrações e contratempos, à dificuldade em assumirem o esforço necessário para realizar certas tarefas e à incapacidade de saberem esperar pelas coisas. Bruce Tulgman descreve uma sociedade idêntica, mas associa-a mais especificamente ao fenómeno “helicopter parenting”, que, na sua opinião, se está a tornar em “helicopter parenting on steroids”. Tulgman descreve-o com particular assertividade: «Os pais (e outras figuras de autoridade) estão totalmente empenhados em supervisionar e apoiar cada movimento das crianças, validando as suas diferenças, desculpando (ou medicando) as suas fraquezas e preparando-as com todas as vantagens materiais possíveis» (nota 6) . Se na escola e em casa evitarmos a todo o custo que as crianças lidem com a frustração e com as próprias incapacidades, não poderemos trabalhar com elas a capacidade de reconhecerem os seus sentimentos e os dos outros, de se motivarem e de gerirem bem as suas emoções e as relações que mantêm com os outros, ou seja, não as poderemos ensinar a ser emocionalmente inteligentes (nota 7). Poupando-as de maneira exagerada às dificuldades normais da vida na altura certa, ao chegarem ao mundo do trabalho, ser-lhes-á mais difícil adaptarem-se para trabalhar eficazmente em equipa e encontrarão obstáculos inesperados na gestão dos próprios estados emocionais, impulsos e recursos. Era isso que acontecia com os jovens diplomados pela GBC – claudicavam perante bactérias contra as quais não tinham desenvolvido anticorpos.
O mundo em que a globalização e a automatização requerem um desenvolvimento mais profundo e amplo das nossas soft skills é o mesmo mundo em que o ambiente de hiperprotecção, em sentido inverso, mina as oportunidades de desenvolvermos essas mesmas soft skills. O desafio que as escolas – e as famílias – enfrentam na resposta à necessidade de desenvolver competências pessoais e sociais joga-se, por isso, numa dimensão labiríntica, pois, tal como num labirinto, o mundo em que vivemos é simultaneamente uma construção que espera que atinjamos um fim e uma construção desenhada de uma maneira que torna difícil atingir esse mesmo fim. Vejamos dois casos que mostram como as escolas, por onde passa parte da solução do problema das soft skills, estão enleadas neste labirinto.
O desafio que as escolas – e as famílias – enfrentam na resposta à necessidade de desenvolver competências pessoais e sociais joga-se, por isso, numa dimensão labiríntica, pois, tal como num labirinto, o mundo em que vivemos é simultaneamente uma construção que espera que atinjamos um fim e uma construção desenhada de uma maneira que torna difícil atingir esse mesmo fim.
Em primeiro lugar, preparamos cada vez mais o caminho para os alunos e menos os alunos para o caminho. Numa conferência feita há pouco tempo sobre saúde mental na adolescência, o professor Daniel Sampaio apontava o erro de se levar os filhos ao psicólogo ao mínimo problema, pois saltam-se etapas simples como a de conversar com eles sobre o que está mal, ajudando-os na difícil tarefa de lidar autonomamente com os desafios. Nas escolas, é frequente encontrar-se este imediatismo na definição de estratégias de apoio e adaptações sem esgotar outras medidas. Altera-se o currículo, as tarefas e a avaliação de maneira quase individualizada até serem adequados para um determinado aluno, muitas vezes ao abrigo do bem maior da sua autoestima, sem avaliar a possibilidade, ainda que menos fácil, de ser ele a adaptar-se e a fazer o seu caminho de aprendizagem. Em sentido inverso, para prepararem os alunos para o que os empregadores esperam deles, as escolas esforçam-se por promover atividades que desenvolvam competências pessoais como a adaptabilidade e a autonomia. Por outras palavras, a sociedade espera que a escola desenvolva a adaptabilidade com os alunos, mas espera também que o ensino seja altamente personalizado. A escola não tem de ser uma casa de terror, mas também não pode ser um parque de diversões. A frustração do insucesso, o tédio e o aborrecimento não devem ser promovidos, mas, quando acontecem, são recursos educativos muito válidos, porque são inerentes à condição humana. Saber geri-los é uma “Human Skill”, como dirão na GBC.
A frustração do insucesso, o tédio e o aborrecimento não devem ser promovidos, mas, quando acontecem, são recursos educativos muito válidos, porque são inerentes à condição humana. Saber geri-los é uma “Human Skill”, como dirão na GBC.
Em segundo lugar, criamos ciclicamente venenos com uma mão e antídotos com a outra. É habitual ouvir-se falar das consequências dos confinamentos nas relações pessoais para justificar algumas instabilidades e inabilidades comunicacionais que identificamos hoje nos alunos, mas a pandemia, ao tornar obrigatórias as comunicações digitais, não criou problemas novos, apenas veio acentuar uma tendência que vinha de trás. Ter isto presente é importante para que não se pense que essas dificuldades desaparecerão com a pandemia. Claro que a imediatez dos grupos de WhatsApp da turma ou a potencial dimensão artística do Instagram e do TikTok promovem a comunicação e a expressão, mas dificultam o desenvolvimento da importante soft skill da comunicação interpessoal, que é mais do que ter a capacidade de se fazer entender (o que já não é pouco), é ter a capacidade de comunicar com uma intenção ética. Não quero dizer com isto que devemos ignorar os benefícios educativos que nos trazem as redes sociais, mas estamos a afundar-nos no labirinto quando propomos as ferramentas digitais como meio de potenciar a comunicação entre os alunos (o veneno) ao mesmo tempo que trabalhamos com eles a escuta ativa e o feedback construtivo (o antídoto). O antídoto não vence o veneno porque o veneno é contínuo. A impessoalidade da comunicação através dos meios digitais desenvolve ao mesmo tempo a nossa capacidade de nos expressarmos e a nossa incapacidade de sermos sensíveis às fricções que essa comunicação provoca no contacto com as outras pessoas. Se pensarmos nas hard skills como o pistão de um motor e nas soft skills como o óleo que o lubrifica, a comunicação sem o contacto direto tende a ser um motor a trabalhar sem óleo. E isto, sim, é um cliché nos dias de hoje – falar bem e não saber ouvir.
Não quero dizer com isto que devemos ignorar os benefícios educativos que nos trazem as redes sociais, mas estamos a afundar-nos no labirinto quando propomos as ferramentas digitais como meio de potenciar a comunicação entre os alunos (o veneno) ao mesmo tempo que trabalhamos com eles a escuta ativa e o feedback construtivo (o antídoto). O antídoto não vence o veneno porque o veneno é contínuo.
Os alunos que frequentam o curso da GBC aprendem que as soft skills são fundamentalmente capacidades que pomos em jogo na relação com os outros. É por isso que, das três áreas do conhecimento em que eles se fundamentam para analisar
os casos práticos nas aulas (e que estão na base de várias habilidades pessoais e sociais), duas estão diretamente associadas à manutenção de “Successful Social Relations”: a comunicação e a ética, aqui entendida como aquilo que nos permite gerir a nossa vida de modo a fazer o menor dano possível aos outros. Mas a sociedade da hiperproteção, pelo contrário, é narcisista, porque procura fazer com que, acima de tudo, o indivíduo se sinta bem. A hiperproteção não é um problema apenas nas escolas e nas famílias, a própria sociedade evoluiu no sentido de tudo nela poder agradar ao nosso ego. O algoritmo do Instagram está desenhado para nos apresentar sugestões de vídeos que, de acordo com a nossa interação com a aplicação, serão do nosso agrado. Os famosos chats de inteligência artificial adequam-se progressivamente aos nossos desejos e dão-nos as respostas que estão de acordo com as nossas preferências. O “outro” foi expulso, para dar lugar ao domínio do “eu”. Em parte, é por isso que vemos turistas a tirar selfies em poses sensuais sentados nos carris de Birkenau. O que os move é a selfie, a sua visão sobre eles mesmos, indiferentes à memória dos espaços e à sua sacralidade. O conceito de selfie é um dos exercícios mais óbvios do narcisismo contemporâneo, como se fosse o epítome de uma época, mas, nestes casos infelizes, é uma grave falha ética. Para dar outro exemplo menos delicado, é também por via desse narcisismo que visitamos a China e trazemos como souvenir uma t-shirt do Hard Rock Café de Shenzhen. É uma falha na comunicação interpessoal, pois, sem querer, damos a entender que o que valorizamos na cultura do outro é o espelho em que nos podemos ver. Visitamos lugares diferentes, mas procuramos neles o igual. Se isto parece despiciendo, pensemos um pouco no que seria um turista espanhol levar como souvenir da belíssima Foz do Douro uma t-shirt com uma publicidade ao Mercadona – Porto.
O desenvolvimento das soft skills é um labirinto porque o altruísmo que encontramos no seu centro está rodeado de tijolos de narcisismo. O desafio de trabalhar soft skills é essencialmente este.
Notas:
1 “Successful Social Relations”, curso GHUM 1087) da George Brown College
(https://www.georgebrown.ca/programs/course-outlines).
2 “Human Skills”, curso CMMK 1087 da George Brown College (https://www.georgebrown.ca/programs/course-outlines).
3 Bruce Tulgman, Bridging The Soft Skills Gap
4 https://www.linkedin.com/business/talent/blog/talent-strategy/global-recruiting-trends
5 https://www.weforum.org/reports/the-future-of-jobs-report-2018/
6 Bruce Tulgman, Bridging The Soft Skills Gap
7 Daniel Goleman, Trabalhar com Inteligência Emocional
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.