O Irão e o poder da educação

A luz da educação brilha no Irão e brilha em todo o mundo, onde existem iranianos à espera que, desta vez, a História seja diferente. Juntos, anseiam que 2023 traga a promessa de uma folha em branca, onde se escreve um novo capítulo.

Chiara lembra-se bem da infância que teve. Adorava comer batatas fritas, mergulhadas em ketchup. Bruce Lee era o seu ídolo de meninice, ouvia punk e usava Adidas, que palmilhavam as ruas de Teerão, a capital iraniana. Isto foi antes da Revolução Cultural islâmica de 1979. É assim que começa o filme de animação Persepólis, de 2007. Chiara é, na verdade, Marjane Satrapi, uma escritora iraniana, cuja história ficou eternizada desta forma. Uma história que se repete na vida de muitas jovens iranianas, forçadas a deixar a família e encontrar na Europa a liberdade, depois da Xaria, a lei islâmica, ter tomado conta do país.

Muitas vezes, pensa-se que o futuro é uma linha contínua de progresso. Ainda há poucos dias, a 31 de dezembro, a máxima era “ano novo, vida nova”. O amanhã só pode ser melhor que ontem, pensa-se. O processo de consolidação dos Direitos Humanos mostra o contrário – e, muitas vezes, o amanhã traz recuos.

Nada está assegurado, nem mesmo as liberdades e direitos que usufruímos na nossa democracia, a portuguesa. Ainda no domingo o mundo chocou-se com a invasão e a destruição de instituições democráticas brasileiras.

Os nossos direitos podem estar sempre por um fio, por mais invisível que seja. É isso que mostra a História do Irão. Nas ruas de Teerão, em 1979, muitos iranianos pediam democracia. Estavam contra o regime de Reza Pahlavi, o todo-poderoso Shah, apoiado pelos Estados Unidos. Sob o poder do Imperador, havia liberdade civil, mas não política. Antes de 1979, as mulheres passeavam de mini saia pelas ruas do Irão, não tinham de usar o hijab (o véu islâmico) e ocupavam os cargos mais altos do país – em bancos, em companhias de seguro, nas universidades.

Nada está assegurado, nem mesmo as liberdades e direitos que usufruímos na nossa democracia, a portuguesa. Ainda no domingo o mundo chocou-se com a invasão e a destruição de instituições democráticas brasileiras.

Tudo mudou. O amanhã de 1979 foi tomado por uma ditadura clerical, o regime dos Yatollahs. As mulheres, logo a partir dos sete anos, são obrigadas a usar o véu em lugares públicos. Não podem sair do país sem a autorização de um homem, membro da família, nem podem ter amigos, já que o ajuntamento entre homens e mulheres, fora do núcleo familiar, é reprimido pelas autoridades. A normalidade que temos como garantida, no Ocidente, não existe no Irão.

O filme Persepólis mostra também como os iranianos aprenderam a fintar as regras. Num país onde não existem discotecas e a venda de álcool é proibida, as festas ilegais são comuns, com recurso ao mercado negro para matar a barriga de misérias.

Mas não é suficiente. Hoje, grande parte dos iranianos dizem “chega”, sobretudo os mais jovens, guiados pelo poder da educação.

Mahasa Amini. É um nome que marca o ano de 2022. Esta jovem curda estava numa estação de metro em Teerão quando foi presa pela polícia da moralidade, o garante da ordem alcorânica. Em causa, estava o alegado uso incorreto do véu islâmico. Morreu horas depois, com 22 anos. Esta morte alimentou uma onda de protestos, que não param, apesar da passagem dos meses. Uma “revolução”, dizem os ativistas, porque é um movimento que junta homens e mulheres e paralisou, com greves, vários setores económicos, incluído o da exploração do petróleo, noticiou o The New York Times.

É um ajuntamento laico, espontâneo e liderado pelas mulheres. Elas são as Heroínas do Ano, para a revista Times, sucedendo aos cientistas que desenvolveram as vacinas contra a covid-19, Heróis do Ano de 2021. Segundo a revista, até dezembro de 2022, já morreram mais de 400 pessoas nos protestos, fruto da repressão policial, 60 das quais eram crianças.

Há histórias impressionantes de pequenas raparigas mortas nos protestos. É o exemplo de Hasti Narouei, de apenas 7 anos, cuja história é contada pela BBC. Morreu na repressão num momento de contestação, quando tinha começado a ir à escola há semana. A idade média das detenções é incrivelmente baixa: 15 anos.

 

E este é o poder da educação. Não é por acaso que, agora, os talibãs limitam o acesso das raparigas à escola, no Iraque, depois da saída dos Estados Unidos do país. 

Ao contrário de Portugal, o Irão é um dos países mais jovens do mundo: 40% da população tem uma idade inferior a 24 anos, de acordo com dados da UNESCO. Para a Time, estas jovens não se identificam com a cultura islâmica, mas sentem que pertencem mais a uma “comunidade transnacional da Geração-Z”: algumas são vegans, a maioria não quer casar, nem ter filhos.

E este é o poder da educação. Não é por acaso que, agora, os talibãs limitam o acesso das raparigas à escola, no Iraque, depois da saída dos Estados Unidos do país. A educação alimentou esta geração que domina os protestos iranianos. São uma geração que anda na Universidade, que lê, que tem acesso à internet e que olha um mundo global através de um ecrã do telemóvel. Que resiste.

Desde a Revolução que os iranianos contestam o poder da República Islâmica, com destaque para o “Movimento Verde” de 2009. Mas será que são estes jovens que vão fazer o país mudar? Por enquanto, ouvem-se notícias assustadores das ações perpetradas pelo poder. Na tarde que escrevo este texto, mais dois jovens foram executados por envolvimento nos protestos.

Um deles, Mohammad Mehdi Karami, tinha a minha idade, 22 anos. Uma vez mais, um jovem. Era campeão de karaté nacional, tinha sonhos e família. Os ativistas pedem uma posição mais assertiva dos países ocidentais, a começar pela expulsão dos embaixadores que representam a República Islâmica.

A luz da educação brilha no Irão e brilha em todo o mundo, onde existem iranianos à espera que, desta vez, a História seja diferente. Juntos, anseiam que 2023 traga a promessa de uma folha em branca, onde se escreve um novo capítulo. Onde podem dizer que, afinal, o amanhã é sempre melhor.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.