O segundo período está a terminar. Foi um trimestre marcado pelas greves dos professores. O tempo dirá os resultados desta contestação. Entretanto, já sabemos que muitos alunos foram afetados. As reclamações dos professores são conhecidas: melhoria dos salários e dos acessos a escalões de progressão na carreira; a inclusão dos já famosos 6,5 anos para a contagem do tempo de carreira; o fim ou o atenuar das deslocações anuais para leccionar por esse país fora e maior clareza nas novas formas de recrutamento. Razões que têm grande valor: são as “hard reasons“, visíveis e concretas. Mas as razões maiores para esta onda de insatisfação, penso, são outras. Qual imensa zona subaquática de um grande iceberg, há motivações invisíveis e mais difíceis de nomear: podemos chamar-lhes “soft reasons“, embora não sejam nada soft!
Em 23,5 anos de vida laboral, levo 10,5 anos como professor em diversas escolas, nem sempre a full time: uma década com muitas horas dentro de lugares de ensino. Não sou, já se vê, um ‘professor de carreira’: não subi nenhum escalão, nem cheguei a concluir a profissionalização em serviço.
Ao longo destes anos, fui trabalhando noutras áreas. Sem o saber, segui as recomendações da OCDE que, nos seus relatórios internacionais sobre educação, sugere que os professores devem trabalhar noutras áreas, alternando tempos de dedicação ao ensino com outros projetos profissionais: experiências laborais que os enriqueçam e que acabem por vir a beneficiar também os próprios estudantes. No nosso país, é difícil levar isto à prática.
Estando e trabalhando simultaneamente fora e dentro de realidades escolares, talvez as consiga descrever com uma dose temperada de proximidade e distância.
E o que fui observando ?
Antes de mais, um enorme cansaço da parte de muitos professores de carreira: um desgaste muito manifesto. ‘Quanto tempo falta para a reforma?’ é um pensamento e uma conversa recorrentes: “tens a tua contagem (de tempo de serviço) toda em dia?”.
O tamanho das turmas e a impossibilidade real de chegar a todos: que gera frustração a quem quer ensinar todos e só consegue efetivamente chegar a alguns. E que dizer de certas turmas, nas quais é praticamente impossível dar aulas e para as quais se avança até a medo. Raramente os professores dão o flanco sobre isto fora dos muros da escola, mas vai-se sabendo. Uma turma é um coletivo com características sociológicas complexas que, por vezes, não resulta, redundando num ‘pequeno pedaço de inferno’, hiper-desgastante. A (re)composição de uma turma é uma arte que merece muita atenção.
O tamanho das turmas e a impossibilidade real de chegar a todos: que gera frustração a quem quer ensinar todos e só consegue efetivamente chegar a alguns.
As cada vez maiores faltas de respeito de tantos estudantes, com famílias disfuncionais ou não: e, em muitos lugares, também de muitos pais para com professores. E as muitas carências afetivas de tantos alunos, obrigando o professor a fazer papel de pai, amigo, irmão, muitas vezes sem se dar bem conta; com o evidente desgaste associado.
A estreiteza intelectual: estima-se que um professor que lecciona a mesma disciplina ao longo de 20 anos utiliza cerca de 10% da sua área cerebral; e isso vai causando uma gradual atrofia no seu cérebro. O sistema atual é hiper especializado e não permite mudanças de leccionação de disciplinas. (Em Moçambique tive oportunidade de dar um ano de aulas de português e foi excelente: em África tudo é possível!).
A estreiteza intelectual: estima-se que um professor que lecciona a mesma disciplina ao longo de 20 anos utiliza cerca de 10% da sua área cerebral; e isso vai causando uma gradual atrofia no seu cérebro.
O ambiente de ‘cortar na casaca’ das salas de professores: percebe-se a necessidade de uma certa catarse naqueles espaços, mas isso facilmente se vira contra os próprios professores; a queixa recorrente empurra o próprio para baixo e cria um péssimo ambiente no corpo docente.
A comparação com outras profissões, muitas vezes as dos pais de alunos: vidas profissionais que exigem semelhantes, ou até menores, habilitações e responsabilidade mas que “pagam” muito mais e parecem ser muito mais estimulantes, com viagens, formação gratificante e prémios anuais. O trabalho nas escolas é muito vivido ad intra: são instituições que absorvem toda a energia para dentro de si, em elevado contraste com a atual realidade globalizada e com as emergentes formas de trabalhar. “O mundo da gestão parece-me tão mais interessante e vibrante”, dizia-me há tempos um professor. Comparar é terrível!
Os horários muito mecânicos e inflexíveis das aulas a metro (demasiadas), como se os professores fossem robots que ligam e desligam a ‘inspiração’ para dar uma aula: por isso normalmente se contam pelos dedos da mão as boas aulas que um professor reconhece que dá num trimestre (e dá muito gozo dar uma boa aula!).
A burocracia: sobretudo para os diretores de turma, a papelada e os registos informáticos “necessários” são mais que muitos e quase todos bastante inúteis, causando uma irritação e uma sobrecarga escusadas.
Será sempre mais fácil reclamar melhores salários e progressão de carreira (hard reasons) do que ater-se a procurar respostas a estas razões poliédricas de fundo (soft reasons). Ambos os tipos de razões exigem respostas à medida, e a par umas das outras. Não vale é tapar o sol com a peneira das “condições mais dignas” com uma atitude do tipo “sinto uma grande insatisfação com a minha vida de professor e então vou reclamar um melhor salário para a “aguentar” tal como ela é e ir vivendo assim o melhor possível”. Há aqui um realismo muito insuficiente, nada transformador. Também não diria que só contam as razões mais de fundo e “enquanto estas não melhorarem não vou exigir nada porque quero é mudar o sistema e não viver à conta dele”. Aqui seria cair num excesso idealista, longe da vida diária.
Será sempre mais fácil reclamar melhores salários e progressão de carreira (hard reasons) do que ater-se a procurar respostas a estas razões poliédricas de fundo (soft reasons). Ambos os tipos de razões exigem respostas à medida, e a par umas das outras. Não vale é tapar o sol com a peneira das “condições mais dignas” com uma atitude do tipo “sinto uma grande insatisfação com a minha vida de professor e então vou reclamar um melhor salário para a “aguentar” tal como ela é e ir vivendo assim o melhor possível”.
Que fazer ?
No curto prazo, dar respostas positivas às exigências concretas da parte visível deste iceberg. Sim, é preciso revalorizar ‘exteriormente’ esta profissão e dar-lhe mais dignidade; isso passa por um “cocktail” de medidas concretas que incluem certamente melhores salários e condições.
No médio prazo, ir introduzindo pequenas reformas, de ano para ano, em cada escola. Por exemplo: no próximo ano, nesta escola, introduzimos as salas em U, e no próximo ano vamos flexibilizar os horários da tarde com trabalho e projetos mais autónomos, privilegiando as manhãs para as disciplinas mais “duras” como o português e a matemática. Ou vamos este ano recompor algumas turmas que não estão a resultar. Noutra escola, outras medidas adequadas à sua realidade: uma nova medida em cada ano, proposta e aprovada pelos professores. Isto daria um elan de renovação efetiva que estimularia o trabalho de todos e daria até uma certa identidade a cada escola (“sabes que naquela escola, este ano, retiraram os toques de início das aulas e os alunos até são mais pontuais?”). A flexibilização curricular já permite muito: toca a pô-la mais em prática!
No longo prazo, repensar a sério modelos de escola e formatos didáticos e pedagógicos. Há académicos, e não só, a pensar muito nisto; só que muitas vezes são ótimas reflexões que não saem da academia. Há experiências e ensaios muito interessantes em lugares de ensino por esse país e mundo fora: quase todos pouco conhecidos. Importa pensar e testar modelos de organização e gestão escolar mais flexíveis, mais orgânicos, que respeitem a individualidade e a autonomia de cada professor e de cada aluno e tornem a vida dos professores mais interessante, vibrante e realizada! Avançando por aí, o dito iceberg das razões visíveis e invisíveis de insatisfação dos professores começará a derreter. Ao contrário dos outros, era bom que este iceberg derretesse mesmo todo!
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.