O futuro do Desporto

Os avanços que se aguardam farão surgir um “novo atleta” e mudarão seguramente o significado e a abrangência do Desporto.

Confesso que não foi fácil nestes meses de verão lidar com o desconforto do calor excessivo. Na hora da maior canícula lembrava-me do grito da Florbela Espanca em nome das árvores alentejanas implorando a Deus “a bênção de uma fonte”. À medida que as férias se arrastavam, maior se tornava o efeito devastador do calor. Em tempo de brasa era necessário refrescar. Foi o que fiz com mergulhos nas águas salgadas do Atlântico, no caldo dos regatos que correm para o Tâmega e, sobretudo, nas transmissões televisivas do Tour de France, da Volta a Portugal, do Campeonato da Europa de Atletismo, do Campeonato do Mundo de Canoagem. Curioso como os “mergulhos” nas competições desportivas me transmitem agora uma sensação de frescura intensa, coisa que não acontecia quando era novo. Porque será? No entanto, em vez de continuar a matutar neste novo efeito refrescante, achei melhor ponderar sobre um outro assunto, sobre o “Futuro do Desporto”, sobre os caminhos que esta indústria irá percorrer, o que podemos esperar do Desporto nos próximos 20 anos. Inquieta-me muito a eventualidade de num futuro próximo os meus filhos e netos não se “refrescarem” com as mesmas “atividades clássicas” que tanto me reconfortaram neste estio.

É impossível prever a totalidade das transformações que a indústria desportiva sofrerá nas próximas décadas. Apesar das incertezas, as mudanças chegam ligeiras e algumas tendências são inegáveis.

Manuel Janeira

É impossível prever a totalidade das transformações que a indústria desportiva sofrerá nas próximas décadas. Apesar das incertezas, as mudanças chegam ligeiras e algumas tendências são inegáveis. Um dos fatores primordiais para a evolução do Desporto é claramente a tecnologia. Esta “invasão em larga escala” do desporto pela tecnologia é já uma realidade e a transformação dos contextos da prática desportiva – controlo de tempos, pistas de corrida, pisos desportivos, equipamentos de competição, calçado, lentes,……) tem permitido que se continuem a bater recordes. E assim será também no futuro. Porém, esta invasão tecnológica do Desporto será cada vez mais visível nos bares e restaurantes desportivos e nos espaços que irão rodear as arenas do futuro, permitindo que os adeptos fora do estádio (famílias inteiras, grupos de amigos) assistam ao espetáculo como se fosse “ao vivo” através de ecrãs gigantes e panorâmicos de alta definição, utilizando tecnologias 3D, 4D e hologrâmicas (enquanto comem hambúrgueres ou bifanas e bebem cerveja e coca-cola). Por outro lado, a menor “pegada ecológica” dos Estádios (materiais de construção inovadores e libertação de espaço de estacionamento com recurso a veículos de auto condução e auto estacionamento) permitirá a sua edificação no centro das cidades, transformando-os em elemento de referência na vida das comunidades; e claro, todos muito confortáveis e bem equipados com pisos desportivos especialmente projetados para ajudar os atletas a correr mais rápido e a saltar mais alto.

Este olhar para o “Futuro do Desporto” remete-nos inevitavelmente para uma outra questão: Onde e como iremos assistir às competições desportivas? Nos Estádios claro, mas também nos espaços adjacentes em ecrãs gigantes carregados de novas tecnologias. Ir aos Estádios para assistir às competições desportivas será no futuro, tal como hoje, um aspeto importante da nossa cultura. Mas longe dos Estádios, como teremos acesso às grandes competições (ou às pequenas)? O que se prevê é um combate entre gigantes da tecnologia das comunicações pela conquista de direitos de transmissão. É muito provável que a Google, o Faceboock ou uma outra empresa do género suplante as emissoras tradicionais (RTP, BBC, SportTV) na compra dos direitos de transmissão de uma grande “competição desportiva global” (NBA, Liga dos Campeões, NFL) e que depois disponibilize os jogos gratuitamente. Claro que em simultâneo com “os poderosos” proliferarão pequenos canais com conteúdos exclusivos de uma só modalidade. Certo é que a transmissão desportiva evoluirá globalmente para realidades virtuais que permitirão ouvir/ver um jogo na perspectiva “do meu jogador favorito”, fazendo ele parte (ou não) das equipas em confronto. Por outro lado, a acessibilidade aos conteúdos desportivos será cada vez mais facilitada e a influência dos comentadores e dos jornalistas desportivos diminuirá à medida que aumente o acesso dos adeptos aos atletas através das redes sociais (Graças a Deus!). E neste contexto futurista não espantará se as receitas de publicidade de conteúdo desportivo pirateado fiquem a valer vários milhões de euros anualmente.

Um outro aspeto que ocupará seguramente um enorme espaço no quadro desportivo global tem a ver com os E-Sports e os Fantasy Sports (campeonatos virtuais). De resto, os E-Sports têm já hoje uma profunda ligação com a comunidade jovem de inúmeros países. As receitas, os prémios das competições e os jogadores e equipas profissionais são apenas uma pequena parte desta realidade capaz de encher Estádios com mais de 40 mil adeptos. Também as Ligas Fantasy serão muito possivelmente aquelas que num futuro próximo dominarão o mercado de apostas desportivas. Saliente-se ainda a tremenda evolução tecnológica que fará progredir ainda mais a paixão pelas realidades virtuais e aumentadas neste quadro de “competição desportiva”, elevando-as a um nível nunca antes imaginado. Certo é que, mesmo no futuro, designar como Desporto este tipo de jogos eletrónicos continuará a ser um assunto bastante controverso, sobretudo se atendermos à popularidade que os desportos ditos “clássicos” continuarão a ter no futuro e ao interesse planetário pelas grandes competições de Andebol, Basquetebol, Ciclismos e Futebol Americano.

Um dos campos da ciência que mais influencia terá na evolução do Desporto será, por certo, a biologia/biotecnologia. Os avanços que se aguardam farão surgir um “novo atleta” e mudarão seguramente o significado e a abrangência do Desporto. Uma leviandade insuportável ou um “admirável mundo novo”? Está garantido um “corpo novo” para este “novo atleta”, um corpo alterado e ajustado às exigências específicas das diferentes modalidades desportivas, um corpo afinado para bater recordes e arrasar estatísticas.

Tudo isto para dizer que dentro de uma ou duas décadas estaremos perante uma nova realidade desportiva que incluirá “atletas naturais” e “atletas aperfeiçoados em laboratório” (“atletas artificiais”); competirão separadamente e lutarão por recordes e títulos distintos.

Manuel Janeira

Melhorar a constituição genética através das tecnologias de adição genética (algumas já disponíveis) será muito em breve um procedimento ao alcance de qualquer atleta e uma rotina habitual nas academias desportivas dos principais clubes de todo o mundo. São já conhecidas variações genéticas que explicam o aparecimento de superatletas; e tendo em conta este caminho de antecipação, a lotaria genética vai deixar de ser decisiva para o sucesso desportivo. De resto, a sequenciação do genoma humano em crianças e jovens permite já em alguns países uma espécie de “especialização direcionada”, ou seja, um processo de orientação dos jovens para uma determinada modalidade em função das suas características genéticas. Resumindo, o nosso “superatleta” será “construído” num processo integrado contendo, grosso modo, os seguintes passos: (i) sequenciação genética para identificar aquilo a que podemos chamar uma espécie de “pedigree atlético/desportivo”, (ii) potenciação dessas vantagens genéticas num processo de formação desportiva tradicional e (iii) processamento de alterações genéticas (no conceito “faça você mesmo”) visando a prevenção e o combate às lesões, o aumento da densidade óssea, a diminuição dos limiares da dor e a melhoria geral das estruturas fisiológicas com procedimentos bem mais eficazes que os atuais métodos de doping desportivo. Claro que a recuperação de lesões (e doenças) já é feita, em alguns casos, através do recurso a células estaminais. Por exemplo, é já possível recorrer a um novo método de tratamento de fraturas ósseas através da injeção de “cimento estaminal” no local da fratura, reduzindo-se para dias um processo que tradicionalmente durava semanas. Destaque ainda para a possibilidade de implantar nos atletas chips subcutâneos que, conectados com novos dispositivos GPS e cardiofrequencímetros, entre outros, permitirão uma avaliação precisa dos níveis de esforço (controlo do processo de adaptação ao treino) e a identificação de “padrões de atividade/esforço” que poderão conduzir à lesão (prevenir/antecipar ocorrência de lesões).

Tudo isto para dizer que dentro de uma ou duas décadas estaremos perante uma nova realidade desportiva que incluirá “atletas naturais” e “atletas aperfeiçoados em laboratório” (“atletas artificiais”); competirão separadamente e lutarão por recordes e títulos distintos. Muito provavelmente alguém se irá lembrar de organizar todos os anos um jogo de final de época para ver se os atletas nascidos na natureza poderão vencer os que “aperfeiçoamos” no laboratório. Não acho graça à ideia mas admito que muitos se possam sentir atraídos pelo desafio. Verdadeiramente insuportável seria assistir a uma batalha desportiva entre humanos e robots. Deus nos livre!

Recomenda-se a utilização responsável da tecnologia a fim de mantermos o Desporto como fonte de alegria, divertimento, beleza e felicidade.

Manuel Janeira

É este o meu olhar sobre o “Futuro do Desporto”, embora muito tenha ficado por relatar. Por exemplo deixei de lado alguns aspetos importantes como o neurocoaching e o neurofeedback, ou ferramentas altamente sofisticadas como os óculos estroboscópicos que irão revolucionar a performance desportiva no futuro. O que retenho deste passeio futurista é a certeza de continuarmos a assistir e a praticar as nossas velhas atividades desportivas. Fica ainda a certeza que as inovações tecnológicas facilitarão a criação de superatletas. Porém, recomenda-se a utilização responsável da tecnologia a fim de mantermos o Desporto como fonte de alegria, divertimento, beleza e felicidade. Interessa ainda dizer que muitas das questões aqui explanadas resultam dos desafios lançados a alguns dos meus estudantes e dos dados recolhidos nos relatórios da Futureof.org. Dizer ainda que foi por mero acaso que percebi a frescura que as imagens desportivas me transmitem, embora continue a desconhecer as razões de tal efeito.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.