O florescimento humano

O relatório The International Science and Evidence Based Education (ISEE) oferece uma análise muito completa de temas sobre educação, que projeta o futuro das escolas a partir de uma matriz humanista, concretizada no "florescimento humano".

O relatório The International Science and Evidence Based Education (ISEE), recentemente publicado pelo Mahatma Gandhi Institute of Education for Peace and Sustainable Development (MGIEP) da UNESCO, reúne contribuições de cerca de 300 especialistas sobre o estado atual da educação no mundo e apresenta linhas orientadoras para quem tem o poder de tomar decisões sobre o papel da escola na sociedade.

Trata-se de uma análise muito completa de temas atuais sobre a educação, que projeta o futuro das escolas a partir de uma matriz humanista, concretizada no documento na centralidade que nele assume a expressão «florescimento humano», definido pelos autores como «o desenvolvimento ideal e contínuo do potencial do ser humano» e o envolvimento das pessoas em «relações e atividades significativas, ou seja, alinhadas tanto com os seus próprios valores como com valores humanistas». Não cabe na natureza deste texto um comentário exaustivo ao relatório ISEE, mas julgo que poderá ser interessante partilhar alguns contributos para a reflexão sobre duas das sete ideias-chave que sintetizam o relatório, atendendo à relevância que têm vindo a assumir no discurso sobre a expectativa que a sociedade tem acerca da escola: a) a consideração das competências interpessoais e intrapessoais no processo de aprendizagem («Uma abordagem da aprendizagem centrada no cérebro integral do aluno fortalece a interligação entre a cognição e os domínios socioemocionais, que é essencial para o florescimento humano»); e b) o abandono da perspetiva meritocrática da avaliação («Devia ser usado o potencial em vez da meritocracia para avaliar o sucesso do aluno. O potencial é medido por uma classificação individual da própria aprendizagem, baseada num caminho de aprendizagem personalizado que utiliza avaliações dinâmicas e formativas»).

É necessário, naturalmente, incentivar e divulgar o bom trabalho que muitas instituições têm feito em áreas como a educação para a interioridade e a educação para a cidadania global, mas isso será insuficiente se o acesso à universidade em Portugal continuar a ser definido unicamente por competências académicas, não se exigindo, por exemplo, que para aceder a um curso de medicina os alunos sejam capazes de lidar autonomamente com as suas emoções.

Considerando toda a investigação feita sobre a importância da inteligência emocional e das soft skills no mundo do trabalho, não espanta que os autores do relatório sejam tão claros quanto ao impacto negativo que tem no florescimento humano a ênfase dada pelos currículos escolares à aquisição do conhecimento: «As políticas educativas e as práticas didáticas focadas no desempenho académico em vez de num equilíbrio deste com as competências sociais e emocionais levou a um declínio do florescimento humano e social». Para que aquela primeira ideia-chave se torne uma realidade, não basta deixar a recomendação às escolas de que equilibrem o trabalho sobre as hard skills com o desenvolvimento de soft skills. É necessário, naturalmente, incentivar e divulgar o bom trabalho que muitas instituições têm feito em áreas como a educação para a interioridade e a educação para a cidadania global, mas isso será insuficiente se o acesso à universidade em Portugal continuar a ser definido unicamente por competências académicas, não se exigindo, por exemplo, que para aceder a um curso de medicina os alunos sejam capazes de lidar autonomamente com as suas emoções. Daqui decorre outro problema que deve ser assumido com seriedade: os rankings das escolas não medem o trabalho feito no âmbito do desenvolvimento de competências pessoais e emocionais nos alunos. Não quero com isto dizer que são os rankings que determinam a qualidade das escolas, mas sim que os rankings, ao refletirem aquilo que a sociedade valoriza – os resultados académicos, os tais que não favorecem o florescimento humano –, revelam uma perspetiva social sobre a escola que não propicia a mudança sugerida pela UNESCO. Se é, de facto, determinante para o futuro das escolas e da sociedade globalizada equilibrar as competências académicas com as competências intrapessoais e interpessoais, cabe ao Estado integrar formal e obrigatoriamente estas competências no currículo (sem esquecer que será necessário formar professores) e encontrar formas de as valorizar no acesso à universidade, o que levará, presumivelmente, a que a sociedade acabe também por dar valor à avaliação dessas competências e não apenas aos rankings do desempenho académico. Numa sociedade em que a ambição de frequentar um curso universitário de prestígio tem sido terreno fértil para o crescimento de uma competitividade pouco saudável entre os jovens, e, consequentemente, para o aumento dos estados de ansiedade e de depressão, é importante que se perceba que ou os alunos identificam a utilidade do trabalho sobre as competências sociais e emocionais para o fim que pretendem atingir ou dificilmente eles valorizarão essas atividades, as quais, com muito boa vontade de alguns professores, continuarão a ser conduzidas como dinâmicas complementares ao currículo. Por fim, e apesar de haver um trabalho já muito visível nesta área, é necessário ainda que as políticas de contratação das empresas vinquem cada vez mais a importância daquele equilíbrio entre as competências académicas e as competências sociais e emocionais. Se houver este remar no mesmo sentido da escola e da comunidade em que se insere, poderemos esperar que as perguntas que os pais fazem aos filhos ao chegarem a casa deixem de revelar uma preocupação maioritária com as notas que tiveram no teste ou com a média que vão conseguir alcançar.

Igualmente impactante é a proposta de abandono de mecanismos de avaliação configurados para evidenciar o mérito dos alunos, facilmente classificável através de instrumentos estandardizados, passando a privilegiar-se uma avaliação do potencial de cada aluno, através de métodos de avaliação dinâmicos e formativos que têm em conta o ponto de partida e a evolução do aluno.

Igualmente impactante é a proposta de abandono de mecanismos de avaliação configurados para evidenciar o mérito dos alunos, facilmente classificável através de instrumentos estandardizados, passando a privilegiar-se uma avaliação do potencial de cada aluno, através de métodos de avaliação dinâmicos e formativos que têm em conta o ponto de partida e a evolução do aluno. Também neste caso, o que andamos a fazer nas escolas, de acordo com os autores do relatório, não sai bem na fotografia se a emoldurarmos no conceito do florescimento humano: «As atuais avaliações dos alunos assentes em exames sumativos padronizados, com tempos limitados e de “tamanho único” não são ideais para a aprendizagem e para o florescimento». Esta proposta é, sem dúvida, mais radical e implicaria a refundação da cultura da avaliação escolar, enraizada atualmente em instrumentos mensuráveis, que asseguram mecanismos aplicáveis de modo igual ou idêntico a todos os alunos e que permitem seriá-los de forma objetiva sempre que necessário, como é caso do acesso à universidade e da atribuição de prémios e de bolsas de estudo. Quando os autores do relatório propõem a avaliação formativa e dinâmica, que promove o feedback contínuo para reconhecer e aumentar o potencial do aluno, estão a considerar que esse tipo de avaliação poderá «reduzir o stress associado aos testes e o respetivo impacto na saúde mental» e poderá prevenir a existência de «oportunidades desiguais para grupos minoritários e alunos diferentes». Nos dias de hoje, encontramos, por exemplo, o primeiro problema na realização de provas como os exames nacionais e o segundo na realização de estudos internacionais como o PISA (Programme for International Student Assessment), o TIMMS (Trends in International Mathematics and Science Study) ou o PIRLS (Progress in International Reading Literacy Study), o que torna evidente a radicalidade da proposta da UNESCO, já que é bem conhecida a importância dada pela sociedade aos exames nacionais e também a relevância que os estudos internacionais têm para os decisores políticos na definição de políticas educativas. Esta ideia-chave do relatório põe as escolas a sonhar, mas esbarra numa realidade que terá de ser suficientemente plástica para acompanhar a mudança, além de obrigar a uma reconfiguração do papel do professor, para que as escolas, que estão a fazer o seu caminho para se tornarem mais inclusivas, não se tornem espaços em que a ânsia da igualdade se transforme em injustiça.

A par destas duas ideias-chave, o relatório apresenta outras propostas ambiciosas, que implicam também uma reinvenção da escola, pelo que o que aqui se disse para estas duas é, em certa medida, extensível às demais: apenas serão verdadeiramente implementadas se a sociedade acompanhar esse movimento. Se contrastarmos o eixo normativo de uma escola (o que a escola «tem de ser»), que inclui, além da legislação, também as expectativas da sociedade, com o seu eixo declarativo («o que a escola quer ser»), que inclui a sua missão, a sua visão e os seus valores, facilmente deduzimos o eixo prático («o que a escola é»), que inclui professores preparados sobretudo para ensinar alunos a responder a exames nacionais, que inclui professores com uma carga horária do tempo da escola “industrial” no tempo da escola inclusiva, que inclui mecanismos de avaliação sumativos, que inclui instrumentos que medem sobretudo as capacidades lógico-matemática e linguístico-verbal, imersos numa cultura em que as «notas dos testes», as «negativas» e as «médias» são uma preocupação constante. É um terreno demasiado árido para nele crescer outra coisa que não seja a austeridade da excelência académica, que tem de existir, evidentemente, equilibrada, porém, com outras competências. Mas não adianta esperar que haja uma alteração do eixo prático da escola se não houver mudanças no eixo normativo e no eixo declarativo. É certo que é através da educação dos nossos jovens concidadãos que modelamos a sociedade do futuro, todavia, atendendo ao peso das mudanças que o relatório do MGIEP projeta, se a sociedade que a escola serve não se for transformando também, não podemos esperar o florescimento humano para que aponta a UNESCO.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.