Os evangelhos estão cheios de relatos de milagres. Jesus, enviado a anunciar o Reino de Deus, atravessa as aldeias e cidades da Galileia e da Judeia fazendo o bem, isto é, curando os doentes, expulsando os demónios, trazendo uma palavra de conforto àqueles que andavam desanimados. E, no entanto, às vezes dou por mim a desejar que o texto bíblico também incluísse um não-milagre, uma não-cura ou uma cura falhada. Há um texto que se aproxima “perigosamente” de uma tal situação: os discípulos de Jesus, que já tinham começado a exercer como instrumentos do poder transformador de Deus, não são capazes de curar um jovem que sofria de epilepsia. É Jesus quem, finalmente, acode as súplicas do pai do enfermo e realiza a cura (Marcos 9,14-29). Mas, realmente, não há “falhanços”. Todos os que são tocados por Jesus são curados.
O meu desejo de não-milagres não é fruto de uma espécie de masoquismo espiritual. Jesus é o sinal de que Deus está profundamente comprometido com o mundo, sobretudo com aqueles que mais padecem. E ainda bem! Mas, tenho-me tornado cada vez mais sensível àquelas vidas e àquelas histórias de vida que foram ou são quase só sofrimento, quase só vale de lágrimas. E o milagre, por pequeno que seja, nunca parece chegar. São, pelo menos humanamente falando, vidas falhadas, se é que um tal juízo não é já e sempre uma derrota. Claro que podemos sempre dizer, e bem!, que só Deus sabe o que tais vidas são e alcançam. Contudo, não consigo escapar à impressão de que isso é simplesmente “empurrar o assunto com a barriga”. Há vidas nas quais a dor, a solidão, a doença ou o vício ganharam a batalha e transformaram tudo, até as alegrias mais pequenas, num lento, muito lento calvário.
Para ser autêntico, para responder verdadeiramente aos clamores, ainda que silenciosos, destes seres humanos, o evangelho tem de ser mais que palavras.
Para ser autêntico, para responder verdadeiramente aos clamores, ainda que silenciosos, destes seres humanos, o evangelho tem de ser mais do que palavras. Quem vive dentro do sofrimento não quer uma boa nova que é só uma promessa de profundidade ou um instrumento para viver uma vida mais plena, ainda que isso sejam tudo coisas boas. As vidas falhadas lembram-nos o que, na luta com as pequenas frustrações do dia-a-dia e no esforço por sermos felizes no aqui e agora, nos pode escapar: a redenção que o evangelho promete é uma vitória radical contra todo o mal e implica a transformação que só a ressurreição pode trazer. Talvez para muitos de nós chegue um evangelho que simpaticamente nos convida a ser melhores e a “dar a outra face” quando o dia não corre bem. Mas, somos filhos de uma promessa muito maior e seria enganar-nos pensar que o mundo não precisa da certeza de que Deus quer transformar o mundo em Reino e redimir inteiramente a criação.
Na tradição judaica, a vontade de perguntar tudo é, por vezes, o berço das mais belas intuições. Uma das perguntas que os rabinos se fazem é o que andarão a fazer certos personagens bíblicos enquanto o fim do mundo não chega. De acordo com um texto, o profeta Elias tem uma missão ímpar: antes que o fim do mundo chegue e o Messias venha na sua glória, cabe-lhe registar por escrito cada lágrima, cada grito, cada suspiro que nasça das feridas dos homens e mulheres de todos os tempos. No final, é por este livro-memória de todo o sofrimento que o Messias saberá até onde e a que abismos de dor tem de trazer a salvação definitiva de Deus, para que nada nem ninguém fique esquecido ou seja ignorado. Esperar menos que isto é, para um cristão, um luxo pouco evangélico e o indício de uma cegueira em relação aos últimos dos últimos.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.