Nas modernas sociedades pluralistas e democráticas as pessoas têm conceções muito diversas sobre o que seja valioso na vida. Sobre o bem, numa palavra. Como é, então, possível chegar a um consenso democrático, com base no qual o poder político possa legitimamente tomar decisões?
Nas sociedades historicamente anteriores às atuais o pluralismo de opiniões sobre o valor e o sentido da vida humana era meramente residual. Prevalecia a visão dominante, frente à qual alguns, poucos, intelectualmente rebeldes, defendiam visões alternativas. Regra geral, nessa altura o poder político procurava impedir a divulgação de opiniões divergentes.
Mas não é isso que acontece, felizmente, nas sociedades pluralistas. Nas democracias liberais existem tantas conceções do bem quantas as pessoas que compõem essas sociedades. Como será então possível que nas sociedades pluralistas o poder político possa funcionar mantendo a liberdade das pessoas não só de expressão, mas sobretudo de perfilharem as conceções de bem que entendam?
Como será então possível que nas sociedades pluralistas o poder político possa funcionar mantendo a liberdade das pessoas não só de expressão, mas sobretudo de perfilharem as conceções de bem que entendam?
A liberdade negativa
A resposta individualista liberal diz-nos que o Estado não deve assumir valores substantivos, ou seja, que envolvam o bem, de maneira a respeitar as muitas e variadas ideias de bem que convivem na sociedade multicultural. O Estado deverá ser neutro quanto às conceções do bem, de maneira a não ofender a liberdade de cada um. Por isso, nesta perspetiva, o Estado deve aplicar, se necessário coativamente, apenas normas que envolvam os meios, não os fins, da vida humana em sociedade.
A noção de liberdade dos individualistas liberais é basicamente a preservação de uma esfera de autonomia pessoal, contra interferências de outros ou do Estado. É uma liberdade negativa, que não inclui a participação em debates sobre a res publica.
Desse ponto de vista a intervenção das pessoas no espaço público é prioritariamente considerada instrumental para defesa dessa esfera de autonomia. A intervenção política dos cidadãos é assim desvalorizada.
Os individualistas liberais ignoram a dimensão coletiva da vida de cada um. Para Hayek, por exemplo, é incompreensível que povos ex-colonizados prefiram essa situação a viverem como colónias, pois nessa altura a sua situação económica era melhor. Ou Hayek considerar uma “miragem” a ideia de justiça social. E, ainda, a célebre frase de Margaret Thatcher: “não há sociedade, apenas indivíduos”.
Rawls e a justiça
Na segunda metade do século XX o filósofo americano John Rawls apresentou uma conceção contratualista da justiça (acordo quanto aos meios, não quanto aos fins) que teve um largo acolhimento – e também foi alvo de numerosas reservas.
Rawls separa o bem substantivo do justo, considerando que o poder político se deve abster de medidas que traduzam uma qualquer conceção de bem. Para definir as regras básicas de justiça Rawls constrói um esquema abstrato e muito elaborado, que não vou aqui comentar.
Apenas adianto que, na minha opinião, Rawls não conseguiu eliminar do seu sistema de justiça qualquer valorização do bem, tendo que fazer algumas concessões a valores substantivos e não apenas instrumentais. (Para uma análise sobe as limitações da Teoria da Justiça de Rawls poderá ser consultado o meu ensaio “Pluralismo e Consenso: o Debate Ético na Democracia”, págs. 267 a 287 do livro “Ética e o Futuro da Democracia”, coordenação de João Lopes Alves, Ed. Colibri e Sociedade Portuguesa de Filosofia, 1998).
Por outro lado, e como o filósofo veio a reconhecer, a teoria de Rawls aplica-se apenas ao “pluralismo razoável”, no fundo às democracias liberais de países desenvolvidos. O que, naturalmente, limita o alcance dessa teoria, que é sobretudo uma doutrina política, não metafísica.
Nas sociedades pluralistas livres devem ser afastados do debate político certos temas e valores suscetíveis de dividir as pessoas.
Ultrapassar as guerras de religião
Nas sociedades pluralistas livres devem ser afastados do debate político certos temas e valores suscetíveis de dividir as pessoas. Veja-se o caso da sociedade norte-americana.
Ainda antes da independência dos EUA, em 1776, milhões de pessoas emigraram da Europa para a América do Norte fugindo das guerras religiosas, as mais violentas de todas – pois nesse caso o inimigo vai contra Deus, ou que nós pensamos ser Deus, o inimigo é assim demoníaco.
Como lograram então católicos e protestantes de diversas confissões conviver em paz no solo americano? Tornando as crenças religiosas matéria do foro pessoal de cada um e retirando do debate público as discussões religiosas.
Tacitamente concordaram então os americanos em pôr entre parenteses as convicções religiosas da cada um, afastando a religião do debate político – mas não do espaço público, onde ainda hoje existem várias referências a Deus. É um bom exemplo da limitação dos conflitos numa sociedade democrática, sem eliminar toda e qualquer referência a uma ideia de bem.
A tentação tecnocrática
Nas modernas sociedades pluralistas há influências mais poderosas do que as ideias filosóficas deste ou daquele pensador. A tendência para reduzir o campo da política, onde se situa boa parte do debate social ético, torna-se clara na tentação tecnocrática.
A tecnocracia é tentadora porque é cómoda – evita o confronto de ideias e de valores, ao fornecer esquemas de aparentes soluções prontas a usar. Refiro-me sobretudo à convicção de que o mercado responde a todos os problemas. E que a soma das utilidades dita a resposta conveniente a cada situação.
Contra o que superficialmente por vezes se pensa, o utilitarismo não é uma doutrina egoísta. Se para atingir um bem maior na sociedade eu tiver que sacrificar o meu bem estar pessoal, o utilitarismo exige esse sacrifício.
Mas, por outro lado, a agregação de utilidades oferece uma maneira aparentemente neutra de tomar decisões. Assim se dispensa o confronto de opções no debate público. Nessa medida, o utilitarismo é anti-político.
Mas, por outro lado, a agregação de utilidades oferece uma maneira aparentemente neutra de tomar decisões. Assim se dispensa o confronto de opções no debate público. Nessa medida, o utilitarismo é anti-político.
Escola e valores
Talvez valha a pena recorrer a um caso concreto de uma defesa, ainda que implícita, do Estado neutro. Num artigo no “Público” de 13 de agosto passado escreveu António Barreto (AB): “A escola deve ser democrática. Mas não deve ensinar a democracia. Nem formar consciências políticas”. Num outro artigo, em 10 de julho de 2021, afirmara AB: “A escola como berço da virtude é um velho mito totalitário. A escola não é nem deve ser considerada uma incubadora de cidadãos bem comportados”.
Gostaria de criticar estas afirmações, não em função de uma outra conceção sobre o que deva ser a escola, tarefa para a qual não possuo qualificações, mas pondo em causa a noção de Estado implícita na posição de AB.
Julgo que essa posição parte da ideia de um Estado neutro, dentro do qual se debatem muitas posições substantivas sobre os mais variados problemas. Até há quem pense que a democracia é isso mesmo. Só que a ideia do Estado neutro é uma ilusão liberal.
Além do mais, pretender uma escola sem valores nem política, ao menos implícita, iria trazer problemas insolúveis aos professores de história. Acontece que a história tem uma dimensão política irrenunciável e é uma sucessão de lutas por valores diferentes.
Talvez sem se dar conta, o próprio AB reconhece no primeiro dos seus acima referidos artigos que o Estado neutro é uma impossibilidade, quando diz que a escola “deve dar as informações factuais necessárias à vida em comum, como sejam as regras inscritas na Constituição e fixadas nas leis”. Ou quando retira as leis e a Constituição do imperativo, segundo AB, de a escola evitar ideias políticas.
As leis não são neutras
É que as leis e a Constituição não são neutras – são normas que traduzem sempre uma certa visão do mundo, onde existem factos e sobretudo valores. Mas nas sociedades modernas, cada vez mais multiculturais, não deve o Estado abster-se de tomar partido sobre o que é o bem, que nessas sociedades é encarado de maneira variada e até contraditória pelas pessoas? Deve, mas só até certo ponto.
Por exemplo, o respeito pela cultura islâmica de imigrantes muçulmanos não pode ir ao ponto de as leis do país permitirem que as mulheres sejam maltratadas pelos maridos. Nem que legalmente se aceite a poligamia.
A tendência para separar factos de valores é compreensível, como é desejável que nas democracias liberais exista um largo campo aberto a dissidências. Só que, no limite, há sempre valores substantivos em jogo.
A tendência para separar factos de valores é compreensível, como é desejável que nas democracias liberais exista um largo campo aberto a dissidências. Só que, no limite, há sempre valores substantivos em jogo.
As leis, e particularmente as leis criminais, traduzem explícita ou implicitamente valores substantivos. O mesmo se diga quanto aos apoios que os Estados dão às artes – porquê beneficiar o artista A e não também o B e o C? Não existe aqui neutralidade e ainda bem que é assim.
Medidas envolvem valores
Quando o poder político decide construir uma ponte ou abrir uma estrada essa decisão não é ausente de valores, desde logo a avaliação dos benefícios que essas obras trarão e a escolha de quem beneficiará desse investimento público. E também contam os valores que foram sacrificados pelo facto de o Estado não investir noutros empreendimentos e não beneficiar outros grupos da população, porque, por hipótese, o dinheiro não chega para tudo.
Claro que em democracia os cidadãos podem e devem discordar dos valores que estão por detrás das opções dos governantes e com os quais eles não concordam. É assim que se forma a opinião pública.
Essa é a liberdade democrática essencial, que não é meramente negativa, no sentido de apenas preservar uma esfera pessoal da interferência do Estado. Trata-se da possibilidade de publicamente discordar não apenas das medidas tomadas pelos governantes, mas também e sobretudo, dos valores substantivos implícitos nessas medidas, sem por isso sofrer penalizações. E de propor à comunidade política medidas decorrentes de conceções do bem.
Poderá objetar-se que assim se transforma o normal cidadão numa espécie de parlamentar. Importa, porém, reconhecer que os cidadãos dispõem de muitas maneiras de mostrarem o seu agrado ou desagrado quanto às políticas governamentais. Incluindo o voto em eleições livres e justas.
A liberdade dos antigos e dos modernos
A democracia pluralista é relativamente recente. Teve uma manifestação importante na Grécia clássica e depois reviveu, modernizada, a partir do século XVIII em vários países.
A liberdade democrática essencial reside no direito de todos e cada um contribuírem para o debate ético e político na sociedade, gerando consensos sempre provisórios (quase nunca unânimes, pois tal seria improvável, mas tendencialmente maioritários), sobre os quais assentam as leis e as ações do poder político.
Em democracia nunca há conclusão do debate ético e político. Os que não viram os seus pontos de vista aceites pela maioria não apenas não são afastados do debate como podem esperar que, a prazo, serão capazes de convencer os seus concidadãos a mudarem de ideias.
Esta não é uma novidade da revolução industrial. No início do século XIX Benjamin Constant distinguia a liberdade dos antigos e a liberdade dos modernos. Ora a liberdade dos modernos era, na perspetiva de B. Constant, a defesa da autonomia privada de cada pessoa; a dos antigos era a intervenção na res publica. B. Constant preferia a liberdade dos modernos, mas os antigos têm muito que nos ensinar em matéria de ética e de política.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.