O espanto, o tempo, e o Verbo

A noite negra da alma é inevitável quando miramos o infinito, e constatamos a desproporção absurda entre o nosso entendimento e o alvo da nossa mirada. Perante este desespero, só encontro uma solução espiritual, uma resposta integral: amar.

É por via do espanto que o significado da nossa existência se entranha no peito e no pensamento. Todos nos espantamos pela morte de entes queridos, e pelo nascimento de uma criança há muito desejada; espantamo-nos pela beleza da pessoa amada, de uma paisagem imensa; pela inteligência manifesta num prodígio da arte ou da ciência — mas por algum motivo raras vezes, senão nunca, nos deixamos espantar pela vastidão do tempo. É provável que nós, humanos, soframos da curiosa patologia a que a geóloga Marcia Bjørnerud designa por “cronofobia”: sentimos medo do tempo, e ao passo que contemplamos com deleite uma vista que se estenda por milhares de quilómetros, é com inquietação que cogitamos a passagem de milhares de anos — porque apesar de graças aos transportes já nos sentirmos senhores do espaço, sabemos que somos e sempre seremos servos da efemeridade da nossa própria existência. O espanto pelo tempo, pelo tempo infinito, é demasiado inquietante, demasiado inabarcável.

Oito anos — um iota à escala geológica — é a idade do meu filho, uma criança de muitos entusiasmos, o último dos quais a recolecção de fósseis. Por um feliz acaso vivemos no campo, e a poucos quilómetros de nossa casa encontra-se uma jazida riquíssima deles, nas faldas da serra de Sicó, um pouco a sul das ruínas romanas de Conímbriga.

O espanto pelo tempo, pelo tempo infinito, é demasiado inquietante, demasiado inabarcável.

Caminhar por aquelas paragens permite a um olhar informado viajar na história e na geografia. Não são apenas as ruínas romanas a transportar-nos pela imaginação à época de Jesus de Nazaré e de Tibério César: são também as técnicas arcaicas de agricultura ainda praticadas naquelas courelas, em pouco diferentes da agronomia ensinada por Columela, Varrão e Vergílio há dois milénios: a oliveira, a vinha, o trigo, a cabra e a ovelha tratadas como na Antiguidade. Também a vegetação bravia mediterrânica que recobre estes cerros calcários, composta por carrasco, azinheira, cerquinho e zambujeiro, evoca os Alpes Dináricos, as serras balcânicas e os montes Golã, nesse Levante por onde se formaram as primeiras comunidades cristãs.

Sucede que os fósseis são ainda mais antigos. Velhos de 170 milhões de anos, são literalmente de uma idade antiquíssima, à qual os estudiosos dão o nome intrigante de “Aaliana”. Nesse tempo estas paisagens eram leitos de um oceano que hoje já não existe, quando os continentes tinham outras formas e certas cordilheiras que hoje nos parecem eternas, como os Himalaias, ainda nem sequer existiam. Os mamíferos, tal como hoje os conhecemos, eram praticamente inexistentes e a sua forma nem remotamente sugeria a possibilidade de um dia virem a produzir seres humanos entre os seus descendentes. Era um mundo de répteis em terra e de muitos moluscos nos mares. Eram os fósseis destes últimos que o meu filho de oito anos se entretinha a recolher, maravilhado pelas conchas em hélice dos amonites e pelos cones perfeitos dos ortóceras, e intrigado por reconstituir na sua mente as criaturas completas, com olhos e tentáculos a emergirem das carapaças há muito vazias.

E penso na imensidão deste intervalo, e na impotência humana perante ele, e vêm-me à memória os ensinamentos do Livro de Job e do Eclesiastes: como é inabarcável por nós a plenitude do Tempo.

Pergunta-me a criança há quanto tempo morreram esses animais; que faziam, que sentiam, que pensavam, para onde foram depois de expirarem. Respondo-lhe que não sei, ser-me-á sempre impossível pensar como eles. Pergunta-me por que motivo existiram, e eu reitero a minha ignorância. E por fim pergunta-me que será de nós dentro de milhões de anos. Digo-lhe que daqui a tanto tempo não haverá humanos como hoje — outros diferentes virão suceder-nos, por mor da inexorável evolução das espécies — nem estas serras estarão aqui; e até mesmo as nossas maiores cidades se terão reduzido a uma camada de dois ou três milímetros nas bancadas de rochas sedimentares, se tanto. E penso na imensidão deste intervalo, e na impotência humana perante ele, e vêm-me à memória os ensinamentos do Livro de Job e do Eclesiastes: como é inabarcável por nós a plenitude do Tempo.

E desespero, claro. A noite negra da alma é inevitável quando miramos de relance o infinito, e constatamos a desproporção absurda entre o nosso entendimento e o alvo da nossa mirada; quando o sujeito é posto perante um objecto que não compreende plenamente, e sabe de antemão que sempre excederá a sua capacidade para compreender. Perante este desespero, este mistério, este absurdo, só encontro uma solução espiritual, uma resposta integral: amar. E esse amor divino, religioso, foi-nos comunicado no tempo e no espaço, numa paisagem muito parecida com esta, há dois mil anos, quando recebemos o Verbo e Ele nos disse: “Amai-vos uns aos Outros”.

 

Nota: o autor escreve segundo o Antigo Acordo Ortográfico

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.