O erro (maior?) do Concílio Vaticano II

Afinal o problema não foi nem o latim a menos, nem a cautela a mais, mas a falta de “olho para o negócio” humano. Stephen Bullivant explica.

Todos sabemos que o comportamento humano – o nosso e o dos outros – não obedece sempre e em cada momento (provavelmente, quase nunca!) aos rigorosos ditames da razão. Atuamos e decidimos movidos por outras considerações (e, muitas vezes, por misteriosas inconsiderações!) e a nossa vida acaba por ser moldada, de forma decisiva, por coisas que não decidimos fazer ou, pior, até tínhamos decidir não fazer (como perder tempo com o Facebook ou o Instagram!). E no misterioso mundo do irracional, o que nos parece secundário pode acabar a definir o que professamos essencial, porque afinal este dito essencial depende (sempre) do que nos pareciam detalhes sem importância ou substância.

O leitor que chegou até aqui deve estar a perguntar-se “and so what?”. Mais ainda, “o que é que isso tem que ver com o Concílio Vaticano II?”. As “lapalissadas” acima formuladas não seriam mais do que isso, se muitas decisões estratégicas, sobretudo ao mais alto nível, não fossem inspiradas por uma visão inocentemente racionalista do ser humano. E os homens da Igreja, neste caso, os bispos de todo o mundo presentes no Concílio Vaticano II (1962-1965), não foram alheios a este muito comum erro de perceção. Esta é talvez a mais surpreendente conclusão do estudo realizado por Stephen Bullivant a propósito do fenómeno do abandono da Igreja nos anos antes e depois do Concílio Vaticano II: Mass Exodus: Catholic Disaffiliation in Britain and America since Vatican II (Oxford University Press, 2019).

O peso das decisões do Concílio no fenómeno do decréscimo do número de católicos nos países ocidentais nos últimos cinquenta anos é um dos “clássicos” no debate entre os ditos conservadores e progressistas. Os primeiros culpam o Concílio pelo desastre e vêem na reforma litúrgica o fruto acabado de uma dessacralização do mundo que só podia conduzir ao que conduziu: Igrejas vazias e um povo de Deus desiludido. O único caminho para a frente é, por isso, “voltar para trás”, claro!, “em nome da Santa Tradição”. Os progressistas, pelo contrário, acham que o Concílio pecou por defeito: não foi suficientemente longe, prometeu um vendaval e só produziu um corrente de ar, e das fracas. Acabou, por isso, por desiludir o povo de Deus e os efeitos não tardaram em se fazer sentir.

E, neste caso, a eliminação do que parecia fonte de distração acabou por produzir o efeito contrário ao esperado: aqueles suplementos de piedade eram “estruturas de reforço” da pertença à Igreja e contribuíam decisivamente para uma fidelidade maior à missa de domingo.

A análise que Stephen Bullivant apresenta do movimento de “êxodo” que caracterizou o catolicismo anglo-saxónico nos últimos cinquenta anos revela que, provavelmente, nem conservadores nem progressistas identificaram corretamente o que terá sido o verdadeiro erro do Concílio.

Na sua disposição fundamental, o Concílio quis ser, antes de mais, um “Concílio pastoral”, isto é, um Concílio apostado em reformar a forma como a Igreja estava presente entre os homens, onde o Senhor a chama a anunciar o evangelho. Esta “inclinação pastoral” deu o mote para o primeiro e, provavelmente, o mais “produtivo” dos documentos aprovados: a Constituição sobre a Sagrada Liturgia Sacrosanctum Concilium (SC). O nº 49 di-lo claramente: “Para que o Sacrifício da missa alcance plena eficácia pastoral”. Neste esforço, os dois “princípios-chave” que parecem ter guiado as decisões dos Padres foram a simplificação e a centralização. O primeiro foi o motor da revisão dos textos dos rituais da missa e dos demais sacramentos (veja-se SC 34.50); o segundo a razão pela qual tudo o que distraísse da centralidade da missa e do domingo devia ser eliminado ou colocado em segundo-plano (SC 106; veja-se também Lumen Gentium 11).

Ora, e aqui Stephen Bullivant é particularmente incisivo!, o que faz todo o sentido do ponto de vista (puramente) racional, acabou por se revelar pastoralmente desastroso. Guiados pelo desejo de voltar os fiéis para o essencial, a saber, a missa dominical, os Padres conciliares promoveram, com maior ou menor intenção, uma rigorosa e ascética excisão de tudo o que parecia dispersar as energias do povo de Deus, das repetições no texto da Eucaristia às múltiplas vigílias, novenas e oitavas que pontuavam o calendário litúrgico. Acontece, contudo, que a dispersão nem sempre é inimiga do essencial. E, neste caso, a eliminação do que parecia fonte de distração acabou por produzir o efeito contrário ao esperado: aqueles suplementos de piedade eram “estruturas de reforço” da pertença à Igreja e contribuíam decisivamente para uma fidelidade maior à missa de domingo. O desejo de dar ao povo de Deus “pouco, mas bom” em vez de “muito, mas confuso”, acabou por deixar os fiéis mais vulneráveis a outros “muitos”, porventura confusos, mas não menos eficazes na sua capacidade de nos “converter a outros evangelhos”: da “muita” televisão (nem que seja em streaming!) ao “muito” tempo em supermercados e centros comerciais, onde a repetição do mesmo e a dispersão das mensagens são, contudo, eficazmente postas ao serviço de nos levar a consumir mais e a ser mais o que consumimos (haverá “liturgia” mais eficaz?).

Terá sido este o maior erro do Concílio Vaticano II? É difícil saber o que poderia ter acontecido se o Concílio tivesse sido menos “racional” na sua reforma da liturgia, mas a análise proposta por Bullivant é bastante convincente e estimulante. Finalmente, mais do que voltar ao latim na missa ou, pelo contrário, abraçar os temas fraturantes com mais sensibilidade cultural, o que é mesmo preciso é criar mais lugares e tempos – formais e informais, dentro e fora da Igreja – de encontro com o evangelho e a comunidade de vida que ele inaugura. Essa “boa dispersão” pode ser, afinal, a melhor amiga do essencial.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.