Tenho de começar com uma confissão. Eu fui um daqueles que se riu à gargalhada com o Caim de José Saramago. Apesar de não ser o mais brilhante dos livros do autor, apesar de o argumento ser um bocadinho blasfematório, aquele Caim sem papas-na-língua, qual alter ego de Saramago, tem mesmo muita piada e ganha aos pontos ao deus do livro, e às personagens mais piedosas, como o bem-intencionado Noé. Aquele endiabrado consegue irritar o próprio criador com as suas perspicazes saídas e não tem qualquer escrúpulo em abusar da inocência (bondadezinha) dos outros personagens deste romance bíblico. Mesmo sabendo ao que vem o autor, é quase impossível não simpatizar com o “bota-abaixismo” bem-humorado daquela mal-afamada figura, que passou para a História como o primeiro dos fratricidas. Qual rabino blasfemo, Saramago lê o relato bíblico (Génesis 1-11) com o olhar cirúrgico de quem procura incoerências e buracos narrativos e aproveita cada ocasião para virar o texto contra si mesmo.
Lembrei-me de José Saramago e do seu Caim ao ler um livro que saiu há pouco, intitulado Satanás contra os Evangelistas. Um debate no Céu, editado pela Editorial A.O.. O autor, José Luís Sicre, é biblista e decidiu imaginar um debate na corte celestial entre os demónios e três dos evangelistas: Mateus, Marcos e Lucas. O motivo da contenda são as dificuldades que os evangelhos podem trazer a quem tem fé. Escritos para ajudar quem crê a crer melhor e quem ainda não crê a despertar para a fé, os evangelhos sinópticos, acusa Satanás, são uma espada de dois gumes: quem os lê com atenção encontra facilmente inconsistências e contradições, e, no caso de alguns relatos (como o massacre dos inocentes ou a fuga para o Egipto de Maria, José e Jesus), não pode calar as dúvidas em relação à sua historicidade. Satanás, qual paladino dos “bons costumes”, acusa os evangelistas de faltar à verdade histórica e de encher a cabeça dos cristãos de fantasias mais ou menos piedosas.
Uma piedade de crença fácil ou de uma “orgulhosamente só” inocência são o pior dos serviços à fé, à Igreja e à verdade.
Escrito com humor, o livro dá a palavra aos demónios, que, na sua desconcertante leitura dos textos dos evangelhos, dão voz àquele Caim saramagueano que habita o coração de cada um de nós, crentes ou não crentes, e que está sempre pronto para “desconversar” ou, neste caso, para “desler” o mais sagrado dos relatos.
O objetivo de Sicre não é, evidentemente, “destruir” o texto bíblico ou mostrar que quem crê construiu uma casa sobre a areia. Pelo contrário, aqueles demónios de piada fácil são o melhor antídoto contra uma leitura “crendeira” dos relatos evangélicos da vida de Jesus. Pela “mão” de Satanás e dos seus auxiliares, o leitor é forçado a confrontar-se com o texto sem os filtros do “É Palavra de Deus, não se duvida” ou “Se está escrito, é porque foi assim”. E isto pode ser profundamente libertador, porque os evangelistas Mateus, Marcos e Lucas aparecem então em toda a sua estatura intelectual. Talvez nos surpreenda, mas o conhecimento que o autor de Lucas tem dos clássicos gregos (Homero, Eurípides, etc.) envergonharia muitos licenciados das nossas melhores Faculdades de Letras. E aos autores de Mateus e Marcos também não faltam arte e engenho literários, assim o leitor se decida a fazer as perguntas certas. Os textos evangélicos estão, é certo, ao serviço da transmissão da fé em Jesus, mas não são literatura de aeroporto nem uma espécie de resumo Europa-América do que aconteceu.
Talvez tenhamos algo a aprender com os demónios-críticos literários de Sicre ou com o Caim de Saramago. Uma piedade de crença fácil ou de uma “orgulhosamente só” inocência são o pior dos serviços à fé, à Igreja e à verdade. Felizmente, nunca é tarde demais para se deixar (re)provocar. Boas leituras, se for caso disso!
NB: O livro de José L. Sicre (Satanás contra os Evangelistas. Um debate no Céu) está disponível para compra aqui.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.