Numa manhã de dezembro, o toque inesperado da porta escondia o carteiro. Nos seus braços, a misteriosa caixa de cartão trazia a assinatura de Luís Ribeiro, presidente da APEI – Associação Portuguesa de Educadores de Infância. No seu interior, uma pop-up, um livro em três dimensões, construído para crianças e adultos explorarem a Convenção Sobre os Direitos da Criança, um documento extraordinário de 1989.
Uma vez aberto, o livro, disponível para venda no site da APEI, dá origem a um mundo colorido e frenético – no fundo, como deve ser a vida de qualquer criança. No centro, há uma árvore de cartão, lado a lado com um cordel, onde um pequenote cor-de-rosa desliza sorridente. De lado, uma série de cartões, que funcionam como cartas, dão mote a jogos e desafios para dar a conhecer os artigos da Convenção.
Por exemplo, o artigo 2º prevê que nenhuma criança seja discriminada com base na sua etnia, sexo ou religião. Por isso, convida-se a criança a desenhar um autorretrato, a descrever algumas das suas características e a elencar o que mais gosta em si. Assim se cumpre um dos papéis principais que a educação e as escolas devem assumir: serem uma autêntica janela para criar futuros adultos mais autoconfiantes, felizes e tolerantes, apaixonados pela diversidade.
Eis uma tarefa que começa cedo, desde os primeiros meses de vida. O convívio com os pares e com professores concede uma riqueza à criança inigualável, daí a importância da creche, para crianças desde os meses de idade até aos 3 anos.
Os artigos 28º e 29º são dos mais apaixonantes da Convenção de 1989. Neles, salvaguarda-se a todas as crianças o acesso à escola, espaço próprio para desenvolver talentos e aprender a viver com o outro. Mas a lei de bases do sistema educativo português dita que a educação arranca somente aos três anos. E o que vem antes? Está na altura de repensar a creche e a universalidade da educação.
Vou agora responder à pergunta que ecoa na sua mente: porque raio o Presidente da APEI lhe enviou aquela pop-up para casa!?
Há uns meses, assinei no jornal Público a reportagem ‘Educador de Infância também é uma profissão para homens’. Entrevistei e visitei alunos e professores de várias escolas superiores do país e ouvi a APEI para, no final, perceber algumas fragilidades da educação de infância em Portugal.
Assim conheci muitas histórias de pessoas apaixonadas pela educação, incluindo a de Luís Ribeiro. Na altura, falámos sobre os preconceitos que ainda persistem sobre homens estarem à frente de salas destinadas a crianças. Mas quando se sabe que uma profissão é, acima de tudo, uma vocação, responde-se assim: com o envio de um presente, que ao mesmo tempo é um projeto inovador e premiado.
Os dados da educação em Portugal de 2021 dão conta de que as mulheres representam 99,1% de todos os educadores de infância. Encontrar um homem a estudar educação pré-escolar no ensino superior português é como procurar uma agulha num palheiro.
Com efeito, a história deste trabalho nasce com uma estatística intrigante: os dados da educação em Portugal de 2021 dão conta de que as mulheres representam 99,1% de todos os educadores de infância. Encontrar um homem a estudar educação pré-escolar no ensino superior português é como procurar uma agulha num palheiro. No Politécnico de Leiria, o último aluno homem concluiu o mestrado há oito anos, em 2014.
Porquê? A questão não se esgota nos fatores culturais. A desvalorização da creche é um dos principais problemas. Inscritas no setor privado e fora do Ministério da Educação, o tempo de serviço que um educador presta em creche não é contabilizado para a carreira. É como se estivessem em inatividade, invisíveis. A profissão de educador torna-se pouco atrativa, explicam, principalmente para homens, agarrados à ideia de empregos socialmente prestigiantes e bem remunerados.
Estamos a falar de dois problemas diferentes: a desvalorização da creche e a feminização do ensino em Portugal, embora relacionado. O último problema dava uma reflexão per si, mas deixo uma pequena nota. Estamos a construir um sistema de educação sem homens nas salas de infância e, com isso, a perder imensa riqueza. Isto não satisfaz as muitas crianças que, infelizmente, crescem em famílias monoparentais, com apenas as mães. Ou aquelas que não encontram, com facilidade, num homem, alguém com quem podem brincar ou serem ouvidos, com todas as repercussões que tal implica na construção da sua personalidade.
Voltando à fraca aposta na creche. Esta tem origem, em parte, naquela ideia-feita de que a creche somente serve para “tomar conta”, como se fosse impossível ensinar algo nestas idades. Quantas vezes não se ouve «não vale a pena levares o bebé aqui ou acolá, pois ele(a) não se vai lembrar»? Quando, na verdade, estamos a falar de uma época definidora das nossas vidas, que deixa marcas estruturalmente profundas.
Creches gratuitas. Ouve-se, lê-se, nos programas políticos há anos. Há dias, no Debate sobre o Estado da Nação, o primeiro-ministro assegurou a gratuitidade das creches para crianças nascidas a partir de 1 de setembro de 2021 e que a frequentam pela primeira vez. É suficiente? A creche não devia ser um nível de ensino? É prescindível?
Sobretudo no interior, é frequente as crianças passarem os primeiros anos com as avós ou outros familiares. Perdem experiências que só a escola pode dar. A creche é necessária para todos, para bem dos artigos 28ª e 29ª da Convenção Sobre os Direitos Humanos. A escola é um espaço para isso mesmo, desenvolver talentos, criar crianças e futuros adultos felizes, tolerantes e contentes na vida em sociedade, com o outro. Isso começa a ser assimilado desde cedo.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.