A Doutrina Social da Igreja desafia os cristãos de muitas formas. A que me parece mais interpelante e radical é o chamamento a uma opção preferencial pelos mais pobres, assente no conceito de Destino Universal dos Bens da Terra. Este princípio determina que “Deus destinou a terra, com tudo o que ela contém, ao uso de todos os homens e povos, de modo que os bens criados devem estar ao dispor de todos com equidade, tendo como guia a justiça e por companheira a caridade” (Gaudium et Spes, 69). A Terra, portanto, deve ser posta à disposição de todos, pois a todos foi dada por Deus.
João Paulo II proclamou o princípio do Destino Universal dos Bens como “princípio primeiro de toda a ética social” (Laborem Exercens 18), extensível a todos os povos, tanto relativamente aos recursos naturais como aos bens e serviços que a inteligência humana desenvolveu (Sollicitudo Rei Socialis 33,39). A nível económico, nomeadamente, o princípio do Destino Universal dos Bens tem prioridade sobre o direito de propriedade privada, estabelecendo o dever de partilhar não só o supérfluo, mas também o necessário. Para aplicar este princípio, há critérios concretos, tais como a garantia de emprego para todos e de um salário justo, o apoio aos desempregados, ou a justiça distributiva na sociedade para garantir a repartição das riquezas e dos bens.
Este princípio não é uma novidade. Dizia Santo Ambrósio no séc. IV:
“A terra foi criada para o bem comum e para todos; porque vos arrogais, ó ricos, a sua posse como direito próprio? A natureza não conhece ricos, ela que a todos concebe como pobres. Não é dos teus bens que tu dás aos pobres, é uma pequenina parcela do que lhes pertence que tu lhes restituis, porque é um bem comum dado para uso de todos que tu usurpas só para ti”.
A terra foi criada para o bem comum e para todos; porque vos arrogais, ó ricos, a sua posse como direito próprio? A natureza não conhece ricos, ela que a todos concebe como pobres. Não é dos teus bens que tu dás aos pobres, é uma pequenina parcela do que lhes pertence que tu lhes restituis, porque é um bem comum dado para uso de todos que tu usurpas só para ti.
Quando se pratica a caridade, portanto, faz-se mais obra de justiça do que de misericórdia, restituindo aos pobres aquilo que uma organização económica geradora de desigualdade usurpou.
O decreto de Graciano (séc. XII), citado no nº69 da Gaudium et Spes, exortava:
“Dá de comer ao que morre de fome, porque, se não lhe deste de comer, mataste-o.”
Teremos ouvidos capazes de escutar tamanha radicalidade? Seremos capazes de reconhecer, com S. Basílio, bispo de Cesareia no séc. IV, que “ao faminto pertence o pão que eu guardo; ao homem nu, a roupa que fica no meu armário; ao descalço, os sapatos que apodrecem em minha casa; ao pobre, o dinheiro que fecho no cofre”?
Teremos ouvidos capazes de escutar tamanha radicalidade? Seremos capazes de reconhecer, com S. Basílio, bispo de Cesareia no séc. IV, que “ao faminto pertence o pão que eu guardo; ao homem nu, a roupa que fica no meu armário; ao descalço, os sapatos que apodrecem em minha casa; ao pobre, o dinheiro que fecho no cofre”?
A força destas palavras é extraordinária e penetra na consciência de todo aquele que as escuta. Pois todos temos “roupa que fica no armário” ou “dinheiro fechado no cofre”. E aquilo que julgávamos ser generosidade caritativa da nossa parte, torna-se mera questão de justiça social.
Lembro-me de, há já quinze anos, ter ouvido uma senhora, voluntária assídua numa ONG, comentar a rede de transportes públicos de Lisboa, que eu utilizava diariamente, dizendo, com a maior naturalidade, que odiava andar de autocarro e que, em vez disso, preferia andar de táxi. Como se esse fosse um meio de transporte viável, como outro qualquer, em alternativa ao autocarro. No mesmo estilo, mas noutra ocasião, quando nos encontrávamos no seu carro, comentou, perante a minha expressão de curiosidade ao ver pela primeira vez um GPS: “mas agora já todos têm…!”
A pouca noção que a senhora tinha do “mundo real” das pessoas comuns, de classe média, foi para mim reveladora da distância entre a sua bem-intencionada caridade e o sentido de coresponsabilidade que a Doutrina Social da Igreja nos transmite através do princípio do Destino Universal dos Bens da terra. É a distância que separa a esmola da doação de si. A mesma distância que vai, por exemplo, entre os projetos de responsabilidade social das empresas (demasiadas vezes motivados só por questões de marketing) e a capacidade de alterar, por dentro, uma cultura empresarial assente no lucro pelo lucro e desvalorizadora do capital humano que está na origem, e deveria estar no centro, de toda a economia.
É a distância que separa a esmola da doação de si. A mesma distância que vai, por exemplo, entre os projetos de responsabilidade social das empresas (demasiadas vezes motivados só por questões de marketing) e a capacidade de alterar, por dentro, uma cultura empresarial assente no lucro pelo lucro e desvalorizadora do capital humano que está na origem, e deveria estar no centro, de toda a economia.
Isto é característico de todos nós. Todos gostamos de fazer “boas ações”, mas preferíamos não ter de alterar o nosso estilo de vida. É fácil fazer donativos no Natal, ou quando a vida corre bem e temos algum dinheiro ou algum tempo livre que nos sobra. É menos fácil conceber uma sociedade justa e comprometermo-nos no sentido das transformações necessárias à sua construção, mesmo que impliquem sacrifícios para nós.
A mentalidade capitalista da sociedade atual é completamente contrária ao princípio do Destino Universal dos Bens e isso talvez justifique a tendência que temos a subvalorizar e diminuir a sua premência. Da mesma forma, tendemos a interpretar a imagem do rico que muito dificilmente entrará no Reino dos céus como uma forma de Jesus dizer que quem estiver excessivamente apegado às suas coisas não se salvará, e não como uma condenação de quem simplesmente possui muitos bens porque trabalhou diligentemente para os ter ou porque os herdou. Em resposta a esta interpretação soft da passagem sobre o camelo e o buraco da agulha, dizia um jesuíta brasileiro meu amigo: “mas como é possível ser-se rico quando há tanta pobreza à nossa volta, se não estivermos apegados ao que temos? Se não houvesse esse apego, já há muito que teríamos distribuído o que temos pelos outros!”
Não é fácil, porém. À nossa volta, tudo nos convence dos méritos da acumulação: desde cedo que damos mealheiros e semanadas às crianças, valorizando a sua capacidade de poupança; a propriedade privada é intocável; os self made men que acumulam riquezas incríveis ao longo da vida graças ao seu talento para o negócio são modelos incontestados de perseverança e capacidade de trabalho. Que diferente era a ordem social instituída por Deus quando libertou o seu povo do Egipto, império da opulência, e estabeleceu o Sábado e o Jubileu como mecanismos de regulação da acumulação e do egoísmo individualista!
«“Passando eu por ti – diz o Senhor, falando a Israel, escravo no Egito –, vi-te banhada no teu sangue” (Ez. 16). É o Senhor que ouve o “grito” dos escravos obrigados a construir os palácios imperiais do Faraó. É o Senhor que manda Moisés para os salvar. Moisés, vendido ao Sistema imperial, é convocado pelo Senhor a regressar ao Egito (de onde tinha fugido!) pelo seu povo. E Moisés regressa, trazendo consigo um sonho, o Sonho de Deus.» (A. Zanotelli, La solidarietà di Dio, p.16)
A observância do sábado significa recordar a cada semana os dois princípios fundamentais da economia de Deus: o fim do “suficiente” para todos e a proibição da “acumulação”.
Segundo Alex Zanotelli, missionário comboniano, a primeira lição que o Deus de Israel, Deus dos excluídos do sistema, dá ao seu povo de escravos em fuga é uma lição de economia solidária, assente no sábado. “A observância do sábado significa recordar a cada semana os dois princípios fundamentais da economia de Deus: o fim do “suficiente” para todos e a proibição da acumulação” (A. Zanotelli, La solidarietà di Dio, p.17).
Com efeito, no Êxodo, o Maná do deserto foi distribuído a uns mais, a outros menos, conforme as necessidades de cada casa, “e cada um teve precisamente aquilo de que necessitava: os que trouxeram muito porque tinham uma grande família, não lhes sobejou para o dia seguinte e tão pouco faltou aos que tinham trazido pouco” (Ex. 16, 17-18).
Que tenhamos a coragem de ouvir o apelo que Deus nos lança desde o princípio da revelação e agir de acordo com ela no nosso quotidiano, tornando concreto o sonho de Deus em cada opção do nosso dia a dia.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.