«O Cabo do medo», um livro de Nuno Rogeiro

É pena que, num mundo de tantas “causas”, pareça haver tão pouco espaço para denunciar e combater em prol das populações massacradas em Moçambique.

Escrito por Nuno Rogeiro e publicado pela Dom Quixote em junho, O Cabo do Medo. O Daesh em Moçambique 2019-2020 constitui um estudo detalhado sobre o que se passa atualmente no nordeste de Moçambique. É a primeira obra, desta envergadura, que expõe a situação de domínio que o Daesh, vindo sobretudo do Congo e da Tanzânia, já alcançou numa das regiões desta República africana. O jornalista português reuniu testemunhos em primeira mão que nos relatam uma realidade profundamente chocante, tanto pela sua violência como pela indiferença com que grande parte dos media ocidentais lidam com o problema. A conquista de aldeias, a subjugação das populações locais, a apropriação de recursos, os assassínios em prol de fins que violam claramente o direito internacional, são perpetrados através de meios bárbaros, também eles ilícitos tanto do ponto de vista jurídico como moral.

Tal como tem dado a conhecer através da sua rubrica semanal na Sic Notícias, Leste/Oeste, Nuno Rogeiro suporta-se de fontes “fidedignas”, tanto das “autoridades autárquicas” locais, como de diversas ONG que operam na região, sem esquecer, é claro, os comandos militares (FADM) e policiais (PRM), bem como as Forças de Segurança e Defesa de Moçambique (FSDS). O jornalista comentador serve-se ainda de um estudo recente, entregue ao Conselho de Segurança da ONU a 20 de janeiro de 2020. Trata-se de uma investigação levada a cabo pelo Grupo de Peritos Analytic Support and Sanctions Monitoring Team (ASSMT), cujo objetivo consiste em relatar a atual situação da assim chamada “Província da África Central do Daesh”. Na óptica deste Estado supostamente islâmico, a Província nordeste de Moçambique, onde se situa Cabo Delgado, faz curiosamente parte da “África Central”.

Nuno Rogeiro apresenta uma serie de “indícios” e de “provas” que são, tal como ele constata, “negados ou minimizados por alguns, receados por muitos e escondidos por outros”. É pena que, num mundo de tantas “causas”, como o nosso, pareça haver tão pouco espaço para denunciar e combater em prol das populações massacradas em Moçambique. Não se trata apenas da violação da soberania de um país, de uma República, nem tão pouco apenas da exploração das pessoas e dos seus recursos: trata-se, além disso, de execuções sumárias, perpetradas em nome, não de Deus, mas de um radicalismo de cariz religioso-político. Não, não estamos perante uma “guerra de religiões”, como o bispo de Pemba, D. Luiz Lisboa, faz questão de referir. Não só porque a ideologia que move os assassinos não é digna desse nome, nem os seus interesses económicos ainda por esclarecer, mas também porque as suas vítimas professam diversos credos.

Entre outubro de 2017 e janeiro de 2020, houve certamente centenas de mortos. É difícil precisar o número exato. Segundo os bispos de Pemba e Tete, já foram assassinados mais de 500 seres humanos. Outras organizações governamentais e não governamentais estimam em mais de 700 o número de mortos. Isto, sem contar com cerca de 500 feridos, que conseguiram escapar com vida, muitas vezes sem um membro do seu corpo: sim, foram vítimas das habituais amputações perpetradas no “dito” Estado “dito” Islâmico, como Nuno Rogeiro gosta de o referir. Estes números comprovam que entre 2018 e 2019 houve “um incremento substancial da atividade terrorista”.

Neste contexto, convém ler o testemunho das irmãs Carmelitas Teresas de São José, no que se refere ao recente ataque de grupos terroristas em Macomia, ocorrido no final de Maio passado. Um “ataque” que durou “três dias”, “forte” e “cruel”, segundo a irmã Blanca Nubia Castaño.

A Fundação AIS (Ajuda à Igreja que Sofre) procura ajudar os sobreviventes destes massacres, que vêm para o sul depois das suas casas, igrejas, aldeias… terem sido devastadas pelo terror. O trabalho desta instituição de matriz cristã mostra-nos bem o significado da palavra mártir. Se a etimologia grega deste termo indica-nos que se trata de um testemunho, é preciso perceber a realidade à qual esse testemunho se refere. Por vezes, por motivos religiosos ou por convicções político-ideológicas, as pessoas que habitam um mundo excessivamente polarizado mostram-se capazes de sacrificar as suas energias, o seu tempo, ou até as suas vidas, para destruir, exprimindo assim apenas ódio. De um ponto de vista cristão, pelo contrário, só se aceita o martírio, qual testemunho, como expressão do Amor que define a natureza de Deus: dar a vida pelo Outro e pelos outros, quais pessoas concretas.

O livro de Nuno Rogeiro tem o mérito de alertar para esta calamidade que ameaça a vida de muitos moçambicanos. O jornalista comentador dá-nos ainda a conhecer todo o contexto da presença do DAESH em Moçambique: a impotência das forças de ordem locais, as limitações financeiras, os problemas políticos, nomeadamente no que diz respeito à divisão entre a RENAMO, na oposição, e a FRELIMO, no poder… Tudo isso justifica a necessidade de uma ajuda externa.

Além disso, Nuno Rogeiro tem ainda o mérito de evitar um discurso marcadamente ideológico. Nesse sentido, O Cabo do medo continua a reflexão aberta por O Mistério das Bandeiras Negras, obra que o jornalista publicou pela Verbo, em 2015. Ao situar a invasão atual do nordeste de Moçambique no panorama histórico desta República, Nuno Rogeiro mostra-se capaz de considerar todos os aspectos desta complexa situação. Desde há muito que existem comunidades islâmicas em Moçambique, como os Schabaab. A evolução de um Islão pacífico, com cuidados pelo social, para o “Islão violento” do Daesh também se deve a um aproveitamento político da pobreza e da marginalização de certas comunidades, que tendem a revoltar-se contra aquilo que consideram ser a “ocidentalização demoníaca de Cabo Delgado”. Nesse sentido, o combate não deve limitar-se a uma ação militar, necessário no curto prazo, mas a um programa de desenvolvimento económico e social no médio e longo prazo.

Fotografia: ACN Portugal (Cabo Delgado)

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.