De que nos vale ter certezas

Há palavras que, para a maioria de nós, parecem ser incompatíveis com «religião». «Verdade» e «certeza» são duas delas. Como pode a certeza ligar-se à religião?

1.

Há palavras que, para a maioria de nós, parecem ser incompatíveis com «religião». «Verdade» e «certeza» são duas delas. Postas lado a lado, «verdade» e «religião» parecem remeter-nos para um espaço de prepotência, intolerância e violência ideológica. Em nome das verdades religiosas, quantas faúlhas, quantas lâminas, quantos lutos não assombraram a história – para falar depressa e sem mas nem porquês – ?

Mas, longe da «religião», a palavra «verdade» continua a ser bem-vinda, não já para falar de realidades absolutas ou transcendentes, mas de factos. Em tantos exames escolares, por exemplo, «verdadeiro ou falso» são palavras que se repetem de maneira útil e inócua. E, a aceitar-se que estamos realmente na época da pós-verdade, todos sentimos na pele os efeitos políticos e financeiros das inverdades. Portanto, esta verdade terra-a-terra continua a ser um bem valioso.

Já quando falamos de «certeza», pensamos em algo que é passível de prova e demonstração; algo científico e verificável; algo que não depende de credos, mas de olhos e inteligência. Como pode a certeza ligar-se à religião?

2.

Tanto para a ciência como para a religião, a certeza tem um valor precioso. Sem ela, tudo não passa de balelas: nada mais que palavras, sem chão ou consistência. As ciências «duras» têm uma abordagem geralmente modesta a este respeito: partem de hipóteses e assumem que muito do que dizem são teorias. Simplesmente, mais do que falar de hipóteses e teorias, as ciências físico-químicas procuram formas concretas de as testar e verificar. Desenvolvem técnicas, repetem observações, aplicam esse conhecimento em tecnologia. Ou seja: as ciências físico-químicas apresentam resultados concretos que vão confirmando as suas posições. Essa é a razão do seu sucesso e credibilidade. E todos beneficiamos com isso.

No caso da religião, a questão é bem mais complexa. Em boa parte das discussões, a certeza liga-se à correcção das interpretações. Tal ou tal interpretação dos textos bíblicos, tal ou tal interpretação dos textos dogmáticos ou canónicos: está correcta? Bate certo com o texto e com o seu contexto histórico? Porém, quando passamos para o problema de fundo, relativo não à certeza das interpretações (o que, já de si, é difícil) mas à «certeza da fé», tudo se complica. A dificuldade é evidente: como falar de certeza da fé se Deus, que é a sua razão de ser, não se deixa «verificar»? Mas, ao mesmo tempo, se prescindir dela, que valor sobra à religião?

3.

Numa perspectiva apologética, a expressão «certeza da fé» pretende sublinhar que a fé assenta em realidades objectivas, i.e. não inventadas. Deus existe; revelou-se em Cristo; espera por nós. Ou seja, a revelação é real. Sem dúvida que estes são aspectos centrais da fé. Mas, ao contrário do que essa perspectiva deixa parecer, nenhum deles é óbvio, e não chegamos lá sem um esforço de interpretação, pessoal e colectivo.

Como essa perspectiva nos recorda, e bem, há um lado ou-sim-ou-sopas nos dogmas. Se, de repente, chegasse à conclusão de que deus era uma galinha e que, por isso, lhe deveria oferecer milho em sacrifício de expiação, naturalmente teria que procurar outro grupo e outro culto. Os dogmas e a tradição de uma religião marcam as suas «certezas» e as suas fronteiras. É evidente que as religiões acreditam nalguma coisa, objectivamente; o problema é que aquilo em que elas acreditam não é evidente, objectivamente. Não sabemos como é Deus; muitos dos que conheceram o homem Jesus não viram nele o Filho de Deus. Portanto, não deveríamos ler os dogmas ou a tradição como cartilhas de certezas a memorizar, mas como convites ao discernimento sobre a vida, porque só ela (vivida com pés assentes na terra, espírito crítico e abertura aos outros) poderá dizer algo de significativo sobre esse espaço invisível e silencioso a que os dogmas e a tradição aludem.

Ao contrário de uma fé cheia de certezas, a certeza da fé não tem resposta para tudo; e as respostas que tem não são decretos, mas histórias de experiências vividas, muitas vezes no meio de absurdos e perplexidades, mas também de alegrias e prazeres, que se põem em comum em conversas de amigos. É verdade que a certeza da fé pode conduzir a debates por causas. Mas, fundamentalmente, se a certeza não servir para conviver, então não serve para nada.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.