Não vou a Maiorca

Não vou a São Paulo, a Londres, a Madrid, a Roma, a Copenhaga ou a lugar nenhum que tinha pensado conhecer ou revisitar. E Deus sabe o quanto me custa o processo de não ir. Mas não poder ir não significa que não posso chegar.

Não vou a São Paulo, a Londres, a Madrid, a Roma, a Copenhaga ou a lugar nenhum que tinha pensado conhecer ou revisitar. Nem sequer vou à casa de amigos queridos, dos meus pais ou ao meu trabalho. E Deus sabe o quanto me custa o processo de não ir. O título deste texto surgiu em jeito de brincadeira, numa conversa com um amigo que está longe e que eu tinha planeado visitar em abril. Começou com um “não te posso ir ver” e acabou com “olha, tenho de pensar num texto para maio”. Maio, maior, maionese, maioria, Maiorca, brincámos. “Oh, não posso ir a Maiorca”. Nem a Maiorca nem a lugar nenhum, atirou ele em jeito de conclusão.

Mas não poder ir não significa que não posso chegar. Na verdade, nunca como agora nos tentámos fazer tão presentes na vida de quem está longe – todos aqueles que não partilham connosco o espaço, portanto. Multiplicamo-nos em chamadas, videoconferências, cartas, encomendas, emails e mensagens nas diversas plataformas. A nossa ânsia de chegar adensou-se na mesma proporção que a obrigatoriedade de ficar nos aborrece.

Os miúdos perguntam porque não podem visitar os amigos, estar com os coleguinhas na escola, com os primos, entrar nos lugares. Os nossos pais acreditam que há uma teoria da conspiração global para os manter dentro de casa, confinados, como se algum de nós tivesse visto isto chegar e agora queiramos apenas que todos os idosos do mundo nunca mais saiam de casa.

Esta pandemia está a ser um verdadeiro teste à nossa resiliência, ao bom-senso, à vida em sociedade e à nossa capacidade de não nos deixarmos abater nem entrar em espirais negativas, perfeitamente naturais e causadas pelo cansaço.

Nós tentamos todos os dias convencermo-nos de que está tudo bem, de que vamos superar isto com [praticamente toda] a sanidade mental intacta e desdobramo-nos – alguns de nós – em trabalho, as tais milhentas solicitações nas mais diversas plataformas, as montanhas inenarráveis de trabalhos que os miúdos trazem para casa, os pedidos de atenção, as canções infantis, as 700 refeições por dia, as pilhas de loiça e a incerteza que nos consome desde que tudo isto começou.

Há lares onde as preocupações são muito mais dramáticas: sobreviver em contexto de violência doméstica, ter com o que alimentar a família quando muitas vezes já se perderam um ou dois empregos, conviver num espaço francamente pequeno para o número de pessoas que agora têm que o ocupar 24 horas por dia, 7 dias por semana, desdobrar-se em esforços para aceder às solicitações de uma escola que quer tanto mostrar trabalho feito que está a esgotar toda a gente.

Esta pandemia está a ser um verdadeiro teste à nossa resiliência, ao bom-senso, à vida em sociedade e à nossa capacidade de não nos deixarmos abater nem entrar em espirais negativas, perfeitamente naturais e causadas pelo cansaço. E é também um teste à nossa capacidade de estarmos atento ao outro, uma vez que vamos novamente ser chamados a estender a mão a quem vai, muito possivelmente, perder quase tudo.

É por isso que continua a ser tão importante chegar a outro lugar. Porque a perspetiva de chegar é o que nos mantém intacta a esperança nos tempos que se adivinham: chegar ao final do dia para descansar ou ao início de um outro para renascer; chegar a casa de quem nos quer bem; chegar ao hospital para ver um ente querido; chegar à beira-mar para deixar que nos leve as angústias; chegar àquela exposição que nos alimenta, à rua que nos acolhe, aos braços que nos protegem. Chegar a uma espécie de final deste filme que ainda nos parece apenas uma obra de arte surreal.

Este Grande Confinamento, que nos veio dar a todos uma enorme lição de humildade, de humanidade e de generosidade – lembrem-se sempre de que não é por vós que devem ficar em casa, mas sim pelos outros – só terá efeitos positivos se nós deixarmos.

Chegar, mais do que ir.

Fazermo-nos presentes junto daqueles de quem gostamos tornou-se hoje uma necessidade tão grande que talvez a consigamos colocar numa lista diferente de prioridades quando as medidas de confinamento aligeirarem e nós pudermos partilhar parte dos nossos dias e das nossas vidas com os que nos são queridos. E talvez tenhamos aprendido que não é apenas através da presença física que conseguimos estar juntos.

Mas não tenhamos ilusões: este Grande Confinamento, que nos veio dar a todos uma enorme lição de humildade, de humanidade e de generosidade – lembrem-se sempre de que não é por vós que devem ficar em casa, mas sim pelos outros – só terá efeitos positivos se nós deixarmos. Saibamos acolher com tranquilidade e responsabilidade as vicissitudes de um tempo absolutamente excecional, que nos obriga a mostrar o melhor de nós e que ainda vai exigir de todos uma enorme capacidade de resistência. Apesar de a nossa quarentena já ir bem além dos 40 dias, não é mal pensado recordar a passagem bíblica sobre as Tentações de Jesus no Deserto, para nos lembrarmos de que até ao fim destes tempos – portanto, até haver uma vacina ou um fármaco eficaz – também nós seremos tentados das mais diversas formas. Não deixemos que o desânimo, a ira, a impaciência e o egoísmo se apoderem de nós mesmo quando parecer que estamos no limite das nossas forças.

E quando tudo parecer falhar, entoem este cântico ao jeito de mantra, que a mim me tem ajudado em alguns dos dias mais complexos: “A alma que anda no amor / não cansa nem se cansa”.

[E nada temam. Porque este ano não vamos a Maiorca. Nem possivelmente a lugares fora das nossas fronteiras. Mas um dia poderemos voltar a ir. E iremos de braços, coração e olhos ainda mais disponíveis para acolher aquilo de que nos soubemos privados. Aprendamos que as garantias acabaram, e que num instante tudo muda. Efetivamente].

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.