Não há bons filmes de guerra

Cada guerra deveria suscitar um exame de consciência (realista) sobre o que as artes conseguem ou não fazer pela sociedade.

As notícias da invasão da Ucrânia pelo exército russo são profundamente alarmantes: a palavra “guerra” soletra-se sempre a tinta de choque.

Ora, há não muito tempo, esbarrei numa discussão curiosa sobre se o cinema é (ou deveria ser) pró ou contra a guerra. É costume citar-se o realizador e crítico de cinema francês, François Truffaut, quando dizia que «não existem filmes anti-guerra». No extremo oposto estaria o realizador norte-americano Steven Spielberg que, numa entrevista, afirmou: «qualquer filme, bom ou mau, é anti-guerra».

Vejamos: é provável que um filme sobre os efeitos da guerra impressione e, nesse sentido, desencoraje ou até condene o conflito. Saving Private Ryan (1998) é indiscutivelmente um exemplo de como o cinema pode ser uma voz veemente contra os horrores da guerra. Porém, Truffaut tem razão quando sugere que, mesmo quando fala contra a guerra, o cinema tem sempre algo de levemente sedutor, seja pela nobreza dos heróis retratos, ou pela imagem poética dos combates por causas justas, ou simplesmente pelo estranho (e inominável) prazer mórbido de ver alguém sofrer, a que os alemães chamam de Schadenfreude. Sendo uma linguagem ficcional, o cinema não pode evitar uma certa natureza utópica e cosmética: tem a força e a fraqueza de todo o objeto estético. Ou seja: Truffaut quer recordar-nos que uma coisa é a ficção, outra é a realidade. Por “realista” que seja, o cinema será sempre (apenas) cinema.

Quando se trata de filmes de guerra, a ficção ganha habitualmente contornos de propaganda mais ou menos disfarçada. Sem se dar conta, o cinema pode contribuir para transformar o horror em entretenimento, e o mal em coisa banal, como diria Hannah Arendt. Qual a consequência disto? Podemos tornar-nos insensíveis à realidade crua da injustiça.

Uma visão autocrítica e sarcástica do cinema está presente no filme Inglorious Basterds (2009). Nas cenas finais, Tarantino tanto vinga a honra do cinema, ao denunciar a instrumentalização da arte na propaganda de guerra, como põe a nu o nosso gozo em contemplar o horror: a violência tornou-se lúdica.

Obviamente, este conflito não foi provocado por discordâncias artísticas, e também não é de prever que a arte tenha os instrumentos necessários para o dissolver. Mas este debate sobre o cinema serve, pelo menos, para recordar a urgência e os limites das artes no espaço público. É urgente que as artes falem contra a guerra, mas importa não esquecer que também elas podem ser instrumentalizadas (por interesses vários), ignoradas (pelos governantes), ou simplesmente consumidas acriticamente (por nós).

 

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.