Músicas para calar as armas

O que esta viagem nos desenha não é da superioridade das civilizações. É da superioridade da alteridade, da descoberta do Outro, a vitória da civilização do Amor.

No Afeganistão, a música foi proibida, e as mulheres nem em casa podem cantar. Os talibãs têm medo da música, e ainda mais da voz das mulheres.

Há uns anos, por causa de uns cartoons, houve quem sublinhasse a superioridade da civilização europeia e ocidental, e há quem continue a grunhir contra a vida de pessoas de outras paragens ao nosso lado. Nessas alturas, procuro exemplos dessa superioridade — e são muitos dizem-nos, e quase nos convencem: o tratamento das mulheres, a perseguição política e religiosa, as ditaduras, a pobreza classista. Mas será assim? Há um filme egípcio, “Al-Massir” (O Destino), que já, em 1997, nos colocava as questões de hoje, de amanhã, a partir do confronto de ideias entre moderados e radicais nos califados andaluzes do… século XII. Já então o confronto de civilizações, com guerras e aparentes superioridades, se desenhava nos céus da Europa.

Também há quem diga que Johann Sebastian Bach é o maior compositor de todos os tempos. Mas vacilo quando ouço Prélude de la Partita pour Violin nº 3 precedido de Pepa Nzac Gnon Ma. Estou a meter no mesmo saco Bach e um tema tradicional gabonês, interpretado por Elugu Ayong?! Sim, estou — deixem-me blasfemar. Na música, descobrimos, desarmados, que Bach desenha uma melodia que se entrelaça na perfeição com os sons da selva africana, vozes, percussões, violoncelo, música, beleza e a dança do povo Fang, do norte do Gabão, derrotando discursos de falsas superioridades civilizacionais. (Ouçam então Lambarena — Bach to Africa, de 1995.)

Arrisquemos nova pauta, antes de retomar a partitura: numa altura em que se democratizou o gosto de viajar, a bagagem não tem lugar para a música — mais ainda quando o streaming já praticamente derrotou o CD. Sobra a nostalgia do vinil. A coisa boa da globalização (e do streaming) é o mundo todo ao virar da esquina na internet.

Deixem-me fazer uma rápida divagação, que não é para mostrar apressados saberes enciclopédicos, mas ajuda a compor o tema — e a desenhar uma geografia contra o ódio. Pode começar-se a viagem com o senegalês filho de pescador Baaba Maal em Call to Prayer ou escutar em silêncio os ventos andinos de um Kyrie da Misa Criolla, tropeçar num casamento klezmer dos Muzsikás, percorrer os desertos sufis com o afegão Mohammad Rahim Khushnawaz ou o paquistanês Nusrat Fateh Ali Khan, visitar os banhos do Istanbul Oriental Ensemble ou cair nos braços de Sheila Chandra e das vozes búlgaras em polifonia com António Zambujo. Mas também ouvir os desejos de paz da palestiniana Haya Zaatry em Rahawan.

Num tempo em que nos impingem que quem é diferente (apenas por ser migrante, refugiado, asilado, estrangeiro) deve ficar algures esquecido no seu canto, ou à porta do muro que levantamos ou escorraçado para longe da Europa, talvez possamos reconhecer que estes sons nos levam antes em peregrinação. O que esta viagem nos desenha não é da superioridade das civilizações. É da superioridade da alteridade, da descoberta do Outro, a vitória da civilização do Amor. Mas isto não é música que muitos queiram para estes dias.

Num tempo em que nos impingem que quem é diferente (apenas por ser migrante, refugiado, asilado, estrangeiro) deve ficar algures esquecido no seu canto, ou à porta do muro que levantamos ou escorraçado para longe da Europa, talvez possamos reconhecer que estes sons nos levam antes em peregrinação.

Elias Chacour, que é cristão, palestiniano, árabe, com cidadania israelita (para contrariar as ideias feitas e as definições fechadas), disse-nos: “A palavra guerra significa em hebraico aproximar-se demasiado um do outro, a ponto de não se conseguir respirar. A paz significa afastar-se um pouco, para que eu possa respirar. Hoje, sufocamos.” Podemos descobrir a música afastados apenas o suficiente para respirarmos. E podemos perceber que o mundo precisa de música, em vez de armas.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.