Memória

Há memórias que nos salvam. Momentos em que nos sentimos vivos, inteiros. Por vezes é difícil apercebermo-nos das graças que passam pelas nossas vidas, mas demore o tempo que demorar, somos relembrados da emoção desses dias.

Da Carta aos Filipenses: “Todas as vezes que me lembro de vós, dou graças ao meu Deus, sempre, em toda a minha oração por todos vós.” (Fl 1, 3). Cheguei a este excerto desta carta muito especial quando procurava algo sobre a temática da memória. Quis aprofundar mais este tema quando, devido a viagens e momentos, refleti sobre o que seria de mim sem as minhas memórias. Mergulhar no passado pode surgir por diversos motivos, como em conversas nostálgicas ou até mesmo discussões mais acesas, porque há sempre quem se recorde de algo que foi dito, com cada conto a ver acrescentados três pontos. Mas a situação que me costuma levar a este filme da vida é o silêncio. Quando não há nada a dizer ou a fazer, parece que há algo que se apodera de nós e decide, por algum motivo, que neste momento a memória conduz a nossa alma.

Há memórias que nos salvam. Momentos em que nos sentimos vivos, inteiros. Por vezes é difícil apercebermo-nos das graças que passam pelas nossas vidas, mas demore o tempo que demorar, somos relembrados da emoção desses dias. Breves instantes em que tudo faz sentido, e sentimos no nosso fundo que há sentido no caminho que seguimos. É nestes pensamentos que vamos construindo a nossa força, a nossa fé. É quando vemos o reflexo da vida de Cristo na nossa que encontramos a esperança de continuar em frente, porque afinal somos capazes. Consegui ser bondoso, soube servir e não ser servido, abri-me ao meu próximo e entreguei-lhe a minha alegria, o meu coração, incondicionalmente. Quanta coragem é precisa para viver ciente do amor que recebo e do amor que tenho para dar, e agir de acordo com isso. Quando nos apercebemos do que somos capazes, então não há nada que nos pare. O céu está tão perto.

Há memórias que nos rasgam. Recordo-me de uma explicação que recebi sobre a nossa relação com Jesus, comparando-a a uma folha de papel. Sempre que O magoamos ou ofendemos, estamos a rasgar um pedaço da folha, e corremos o risco de a destruir por completo. Daí as memórias que nos rasgam, que nos ferem o coração. Não é uma boa sensação quando nos lembramos da dor e tristeza que surgiu nas nossas vidas. Fomos manipulados ou enganados, expostos a sofrimento que talvez ainda hoje nos assombre. Não falamos do assunto ou falamos demais, não sabemos chorar ou não nos é permitido. Ou pior que isto, fomos nós quem fez chorar. Pode ter sido inocente, ignorante, mas rasgou mesmo assim. Serei eu capaz de reconhecer o mal que fiz? Quanta gente vive atormentada por um perdão que nunca ofereceu ou procurou. Este tormento rapidamente se transforma em ansiedade, e somos consumidos pela memória que nos perturba em vez daquela que nos ampara. Imaginamos o nosso futuro com base naquilo que foi o passado, ignorantes a qualquer noção de salvação.

Como devemos então medir a nossa vida? Certamente que não podemos escapar à dor do passado, nem subsistir unicamente das suas alegrias, por corrermos o risco de não crescermos além delas. Regressemos à carta de Paulo, já na sua conclusão: “De resto, irmãos, tudo o que é verdadeiro, tudo o que é nobre, tudo o que é justo, tudo o que é puro, tudo o que é amável, tudo o que é respeitável, tudo o que possa ter virtude e mereça louvor, tende isso em mente. E o que aprendestes e recebestes, ouvistes de mim e vistes em mim, ponde isso em prática. Então o Deus da paz estará convosco.” (Fl 4, 8-9). Nesta carta de Paulo, escrita com um afeto que a destaca das restantes, conseguimos compreender aquilo que realmente nos liberta. Mais do que memórias que salvam ou rasgam, é aquilo que fica que importa, o que sobra de nós, o maior dos dons concedidos por Deus, a vida. Uma vida que, na sua imperfeição, procura tudo o que é verdadeiro, tenha virtude e mereça louvor, sempre amparada no testemunho daqueles que deixaram a marca do amor em nós.

Nesta carta de Paulo, escrita com um afeto que a destaca das restantes, conseguimos compreender aquilo que realmente nos liberta. Mais do que memórias que salvam ou rasgam, é aquilo que fica que importa, o que sobra de nós, o maior dos dons concedidos por Deus, a vida.

Isto é um tema mais delicado e complexo do que parece, porque esta reflexão parte do silêncio. É certo que as palavras são expostas, mas conversar sobre memórias, principalmente aquelas que nos marcam pela negativa é complicado, isto apesar de vivermos uma fase positiva de abertura sobre saúde mental, principalmente nos jovens. Quais serão as memórias que ficam das dezenas de milhares de raparigas e rapazes que perdemos para o suicídio todos os anos? Vidas encurtadas por um mundo demasiado egoísta e insensível, incapaz de compreender uma das verdades que Paulo partilha: o dom da vida será sempre a maior prova de amor, e esta será a memória que perdurará para sempre, pelos séculos dos séculos.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.