Há umas semanas quis-se trazer ao Ponto SJ o tema dos populismos como sintoma de duas doenças de que a Europa padece: democracia púdica, sobre a qual já nos detivemos, e o politicamente correcto das migrações. Um bom exemplo desta segunda maleita é o caso do ministro do Interior da Alemanha. Em Março, Horst Seehofer afirmou que o Islão não pertence à Alemanha – mas que os muçulmanos que vivem naquele país, sim. Segundo o governante, a Alemanha está marcada pelo Cristianismo e não pelo Islão. Angela Merkel respondeu publicamente, dizendo que aqueles muçulmanos pertencem à Alemanha e, do mesmo modo, a sua religião – ou seja, o Islão – também pertence à Alemanha. Qualquer uma das duas declarações é rara e fortíssima.
O tabu
Antes de o Islão “pertencer” ou não pertencer à Alemanha – ou à Europa – está em causa a possibilidade de se discutir este tema. Claro que depois daquelas afirmações, Seehofer foi apelidado de xenófobo. Por sua vez, o que Merkel disse corresponde ou ao paradigma do politicamente correcto (que considera que discutir a imigração ou os refugiados é sinal de xenofobia) ou a uma concepção de Europa que aceita ser transformada pelos fluxos migratórios. O que poderia ser uma discussão interessante e da maior relevância para a vida dos cidadãos europeus é inviabilizado porque o politicamente correcto mata à partida qualquer debate.
É proibido discutir a imigração. É proibido porque falar sobre o outro implica que eu saiba quem sou. E nós não sabemos quem somos, o que nos define, o que nos une, para onde vamos. Não quer dizer que não existamos enquanto comunidade, que nada nos una ou que não haja futuro; mas a verdade é que este é um tabu. Ousar pôr em causa as vagas migratórias para a Europa é automaticamente rotulado de xenofobia. E a xenofobia é um óptimo refrão da melodia do politicamente correcto. Por isso, na Europa não há espaço para reflectir sobre o que fazer com os imigrantes e refugiados que já cá estão e que políticas adoptar para o futuro.
Acolher é para todos?
Num ensaio sobre estas questões, o filósofo Charles Taylor sugere que não é por as sociedades ocidentais serem liberais que se tornam um espaço de encontro para todas as culturas, uma espécie de zona franca onde vale tudo. Aliás, afirma que o liberalismo ocidental não é tanto uma expressão do laicismo pós-religioso, mas, pelo contrário, espelha as suas raízes cristãs. Será que no fundo as sociedades ocidentais, liberais, não estarão sufocadas e aprisionadas pela exigência de terem de ser neutras, imparciais, distantes, higiénicas? Esta fracassada neutralidade não deriva numa certa ditadura da tolerância?
Na Europa, da parte dos Estados e da sociedade civil, por vezes vão surgindo atitudes hostis ou pelo menos de não reconhecimento de certas identidades culturais/religiosas/étnicas próprias desse país. O que agudiza gritantemente esta situação é o facto de ao mesmo tempo haver uma indiscriminada abertura ao que vem de fora. Não pode haver símbolos cristãos públicos – por “respeito” aos muçulmanos que vêm –, mas quem vem de outras culturas religiosas pode manter os seus hábitos. Não se promove a natalidade com políticas que ajudem realmente as famílias, mas defende-se a imigração utilizando o argumento da necessidade de crianças. Não é fácil suportar os impostos de um pequeno negócio local, mas os chineses da loja ao lado têm enormes benefícios fiscais.
Não nos deixemos confundir: o contrário da xenofobia não é a abertura das fronteiras. O contrário da xenofobia é o não-reconhecimento das manifestações culturais, sociais e religiosas existentes. Este é o pólo oposto. No outro extremo dos discursos populistas xenófobos estão os discursos populistas que, com as máscaras do liberalismo, da neutralidade, do respeito e dos direitos humanos, levam adiante uma agenda obviamente ideológica, marcada pela diluição das identidades nacionais, estrangeiras, locais, culturais, religiosas ou até de género. Acolher não é simplesmente levantar a cancela da fronteira – isto é o que a União Europeia tem feito, até ao dia em que pagou a Erdogan para reter na Turquia três milhões de refugiados. (Veremos como evolui a questão da Síria, e como vai a Turquia negociar com a Europa o facto de poder “despejar” três milhões de pessoas, subitamente, na Grécia, quando bem lhe apetecer.) Acolher implica reconhecer o outro como tal – e isto requer tempo e espaço público para todos, se quisermos, pelo menos, construir um mínimo de paz social.
Não brinquemos com o fogo
Por tudo isto, não me parece muito rebuscado pensar que este empenhado e fervoroso “respeito” pelo exterior, sem correspondente promoção das tradições internas, tenha as suas consequências nefastas. Assim surgem diversos grupos nacionais e locais que não se sentem verdadeiramente reconhecidos, cresce a distância entre a política institucional e os cidadãos e, por isso, nascem movimentos fechados sobre si mesmos, necessitados de garantir no espaço público aquela voz que a democracia púdica não quer dar. Tornam-se perigosamente sedentos de se afirmarem a todo o custo, transformando-se em impulsionadores de nacionalismos. Quer a xenofobia quer esta falta de cuidados com as tradições locais geram desequilíbrios. A diferença é que à primeira já estamos habituados; a segunda ainda passa com pele de cordeiro.
A política de imigração e dos refugiados poderá ser o ponto decisivo para a Europa, porque implica dizer a si mesma e ao mundo o que é e como quer estar no mundo. Não tenhamos medo que deixar a democracia ser ela própria e de enfrentar o tema difícil que os movimentos migratórios são. Se já encontramos entre nós culturas diferentes de modo tão vincado, como podemos caminhar para a frente em conjunto? (Como) podemos conciliar a riqueza do intercâmbio cultural com a manutenção do que nos é identitário? Será que a nossa identidade humana não se caracteriza primordialmente por evoluir a partir do contacto com os outros? Do mesmo modo que acontece com as nossas relações humanas, não poderá ser assim também entre as culturas, sem fusão nem separação? Por isso, é imprescindível dar seguimento ao debate que Merkel e o seu ministro do Interior iniciaram.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.