Mas que grande borrasca - Ponto SJ

Mas que grande borrasca

Sem querer reduzir o primeiro dos romances à situação da amizade, a leitura repetida deste trecho não oferece outra opção. Ademais, é das que estampa sorrisos e risos na cara.

O Quixote veio parar-me às mãos certo dia. Leitura que é empresa demorada, é um gosto tê-la na mão por ser tão extensa quanto despreocupada. Creio que nenhum infortúnio tem lugar enquanto o leitor folheia a paródia de Cervantes, dando conta das turras de Quixote e de Pança, quando para elas se preparam ou quando delas recuperam. O leitor descansa, carrega o pesado livro, encosta-se, desencosta-se, lê uma passagem que faz rir, outra que faz pensar e comprova que não há literatura como a clássica.

Não enganam quando mandam ler o Quixote, mas parece que nem sempre o vendem como ele merece. Ora, não é que o livro precise de mais marketing, porque já tem em barda, mesmo assim há características que não são comunicadas. Acontece aos clássicos: ao mesmo tempo que são valorizados, são ignorados; por já se saber tudo sobre eles, pouco se fala sobre eles. Basta a evidência de serem obras melhores do que todas as outras.

Li o Quixote precisamente por ser um clássico e agora estou a engendrar a releitura por se tratar de um livro que é muito mais do que um livro, é uma cápsula na qual Cervantes faz o obséquio de armazenar exemplos sublimes de amizade e de outros dos nossos estádios – mas essencialmente de amizade, o estádio que mais me tem dito. Nos livros que lemos tiramos as lições que pretendemos e Quixote e Pança, dupla inseparável, dois dos melhores amigos das artes, dão-nos tanto. Lendo as suas aventuras, tornamo-nos também seus amigos.

A dado momento, ainda no princípio, escreve Cervantes:

«E vendo-o daquela maneira Dom Quixote, com mostras de tanta tristeza, disse-lhe:

– Sabe, Sancho, que não é um homem mais que outro, se não fizer mais que outro. Todas estas borrascas que nos sucedem são sinais de que breve há-de serenar o tempo e hão-de suceder-nos bem as coisas, porque não é possível que o mal e o bem sejam duradouros, e daqui se segue que, tendo o mal durado muito, o bem está já perto. Por isso não deves afligir-te com as desgraças que a mim me sucedem, pois a ti não te cabe parte nelas.»

Tradução do espanhol por Serras Pereira, muito obrigado.

Sem querer reduzir o primeiro dos romances à situação da amizade, a leitura repetida deste trecho não oferece outra opção. Ademais, é das que estampa sorrisos e risos na cara e em tudo o que é corpo. Tenho ideia de ter interrompido gravemente a leitura assim que percorri este diálogo pela primeira vez, prontamente sublinhado por ser de extrema humanidade, porque percebi que lera algo espantoso mas também muito simples, comum, de tantas são as vezes em que me revejo nos arquétipos Quixote e Pança.

A vida é mais ou menos igual para todos. Vivemos, metemo-nos em borrascas, outras vezes metem-nos em borrascas, salvamos os nossos amigos de borrascas, os nossos amigos salvam-nos de borrascas, e é assim que vamos estando. Naturalmente, não gostamos de borrascas, mas temos queda por elas, reconhecemo-las como condição estrutural da vida. (Sem borrascas de que vale viver?) Quero acreditar que era este o entendimento de Cervantes e que foram as tormentas por que passou que o levaram a escrever sobre um fidalgo que quer ser cavaleiro e que para isso precisa de um escudeiro fiel.

A vida é mais ou menos igual para todos. Vivemos, metemo-nos em borrascas, outras vezes metem-nos em borrascas, salvamos os nossos amigos de borrascas, os nossos amigos salvam-nos de borrascas, e é assim que vamos estando.

No século XVII, hoje e enquanto existir literatura (pensamento que assusta), os que escrevem para os outros escrevem sempre a partir de si, por isso é-nos legítimo tomar as palavras que Cervantes dá a Quixote como nossas e verdadeiras, como se pudessem ser ditas por nós aos Sanchos Panças dos nossos dias, mas também pelos fidalgos alucinados que acompanhamos com muito gosto. Somos tão Quixote como Pança.

Ninguém gosta de borrascas, sobretudo quando essas calham aos amigos. Sendo a amizade boa, sendo a amizade, enfim, amizade, o que queremos é aliviar a dor dos amigos. Muitas vezes, desejamos que a borrasca seja nossa e não deles, porque os estimamos a esse ponto. A situação é de equilíbrio, já que os nossos amigos sentem o mesmo quando o azar vem ter connosco e não com eles. A razão não é o forte dos amigos que se fazem acompanhar um ao outro – mas a fé é e o amor também.

O que Quixote diz a Pança não é mais do que o habitual e, por vezes, angustiante antídoto contra as borrascas modernas: «Vai correr tudo bem». É o que precisamos ouvir deles e é o que lhes dizemos. Os amigos precisam dos amigos porque na solidão julgam que o mal é para sempre e que o bem é destino reservado para poucos. Engano. Na Mancha e em qualquer parte do mundo – havendo a sapiência de Cervantes – «há-de serenar o tempo» e os amigos, mais aliviados, retomam caminho.

Espera-os nova borrasca.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.