Mãe, ‘Eu saí da moldura’

Numa comunicação aos pais dos alunos de um colégio, o P. Nuno Burguete, sj, iniciava a sua conferência fazendo a seguinte afirmação: “Vocês amam os filhos que não conhecem.”

Com a devida vénia, peço emprestado a Eugénio de Andrade[1] esta frase do seu magnífico poema dedicado à sua mãe. Não é minha intenção analisar o poema, mas aplicar o sentido da afirmação, tal como a interpreto, à relação educativa, na família e na escola, pais-filhos e educador-aluno.

Aceitar que o filho ou a filha já saiu da moldura, isto é, que já não é aquela pessoa que a fotografia emoldurada fez parar no tempo e no espaço, nem sempre é tarefa fácil. As crianças, os adolescentes e os jovens crescem e a dado momento a roupa que vestem já não lhes serve. As transformações corporais em curso são indício de outras transformações menos visíveis, talvez, mas reais, que se operam em simultâneo nas suas vidas.  “O que queres ser quando fores grande?”, perguntava um adulto a uma criança numa tira de banda desenhada. A resposta da criança não se fez esperar: “Eu!”. A perceção das grandes linhas de força deste ‘Eu’ em construção por parte de um ser em crescimento é uma aventura que tem muitos capítulos e muitos intervenientes ao longo do tempo.

Numa comunicação aos pais dos alunos de um colégio, o P. Nuno Burguete, sj, iniciava a sua conferência fazendo a seguinte afirmação: “Vocês amam os filhos que não conhecem.” Com esta frase lapidar de entrada nunca mais o auditório tirou os olhos do locutor à espera de uma explicação e de possíveis conclusões a tirar. “Então nós não conhecemos os nossos filhos?” perguntavam silenciosamente e em pensamento os pais presentes. Conhecem, sim, em parte; mas a outra parte, escapa-lhes. E se forem pais ausentes, então esta “outra parte” tende a ser considerável.

Sendo a escola um lugar de acolhimento, mas também um espaço social de relações humanas personalizantes, é muito natural que os alunos possam ir ensaiando atitudes e comportamentos com os quais se vão identificando ou não. É uma forma de irem experimentando determinados sentimentos e emoções quando assumem reações e posições pessoais particulares no confronto direto com os seus pares e adultos e de se irem posicionando face a elas. O binómio ação-reação é crucial para essa tarefa de organização interior e de acomodação de valores identitários que ajudam a cimentar uma personalidade em construção.

Quantas vezes, no diálogo sereno e franco entre encarregados de educação e diretor de turma/professor responsável, os pais não ficam boquiabertos de espanto e admiração com as novidades relatadas pelo educador da escola? “Mas ele em casa não revela essa faceta”, comentam. Pode acontecer. E, no entanto, estamos a falar da mesma pessoa, daquele ser cujo crescimento os educadores acompanham com diligência, atentos aos seus ritmos, altos e baixos, avanços e recuos, quase como se fosse uma planta frágil que ainda necessita de ajuda para se robustecer e se afirmar sem medo do que os outros vão dizer ou comentar. Afinal, o que sou não é pecado nenhum; o que faço, é que pode ser bom ou mau.

Lembro-me muito bem de Sara (nome fictício), que após concluir o curso de Direito, com o coração a “sangrar”, dizia aos seus pais: “Acabei de tirar o curso que vocês queriam que eu tirasse; agora, peço desculpa, mas vou estudar Artes, que sempre desejei fazer!”. Contra o parecer e o sentir dos seus pais, rumou mar adentro na caravela que a faria feliz para o resto da vida.

Renato (nome fictício) era filho de pais professores universitários e ficou retido no 9º ano de escolaridade, para espanto dos seus progenitores. Ele, que tinha tantas capacidades naturais e humanas, era quase incompreensível. Quase uma humilhação. Não poderiam esconder o incómodo, este facto, nas conversas com outros pais quando estes relatassem os sucessos e feitos dos seus filhos. As explicações e mais explicações como ajuda e reforço no ano de repetição não estavam a surtir o efeito desejado – era a conclusão mais alarmante perante os resultados negativos do primeiro trimestre. O desajuste era evidente e o desacerto pungente. “O que fazer?”, questionavam. “Há que perguntar ao Renato onde está o foco da sua motivação, aquilo que o apaixona e arrebata, o que o faz sonhar – esse daydreaming que não dá conta das horas a passar.” Afinal, era o cinema. Ingressou numa escola profissional no curso “Audiovisuais e Multimédia”, vindo a concluir com êxito a Prova de Aptidão Profissional (PAP) e, posteriormente, a candidatar-se a uma escola superior de cinema na Europa. Hoje, voa com as suas próprias asas os longínquos céus e daí vislumbra a grandeza da terra com toda a sua beleza para a dar a conhecer ao mundo.

Joana (nome fictício) estava no 10º ano; tinha um olhar atento e brilhante, acolhedor. Os seus olhos parece que falavam mais do que as palavras que proferia. Os seus pais tinham uma empresa de produtos químicos e tudo fazia prever que Joana escolhesse engenharia química para dar continuidade à já ancestral imagem de marca da família. Era pacífico. Até ao dia em que uma conversa, no final da aula, com o professor de psicologia (disciplina opcional), fez eclodir uma perturbação no seu interior. Tinha uma capacidade invulgar para estabelecer empatia e o seu interesse pela psicologia era crescente. A seguir a essa conversa seguiram-se outras, com um fio condutor cada vez mais sério e profundo. Nas férias de Natal, Joana escreveu a sua autobiografia onde revelava uma inteligência intrapessoal e interpessoal acima da média. O professor acabaria por lhe atribuir, por mérito, a nota máxima no final do ano. Hoje, Joana é psicóloga, exercendo a sua missão, mais do que mera profissão, a ajudar pessoas no reencontro, nem sempre fácil, consigo próprias e com os outros.

Nada na vida é linear e muito menos as etapas de crescimento em autonomia e liberdade responsável. A ansiedade está presente perante um futuro incerto que não controlamos e o medo do desacerto espreita em cada canto e esquina. “Mas será que é mesmo isso o que ele/ela quer/deseja? E se se enganar, e se voltar atrás na decisão, como vai ser?” Estas são algumas das perguntas sem resposta que muitos pais colocam nesses momentos cruciais em que vêm os filhos “fugir-lhes das mãos”. Sentem que já não podem dizer como outrora “Tenha paciência; mas o menino vai e vai mesmo!”. Recordam-se que, provavelmente, chegou a hora de assumir o pensamento de Khalil Gibran[2]: “Os vosso filhos não são vossos filhos; são filhos e filhas do chamamento da própria vida. Vêm através de vós, e embora estejam convosco, não vos pertencem.” Chegou a altura do respeito sagrado pelas opções de fundo de um ser (filho/filha) que se determina livremente; que apesar da normal insegurança, arrisca seguir em frente perseguindo o filão interior que lhe abre possibilidades ímpares de autorrealização.

Ajudar a encontrar “o seu lugar neste mundo” é tarefa de todos nós, pais e educadores, acompanhando atentamente, de perto ou de longe, esses passos de um longo caminhar. Se um dia, acenarem com uma mão, pedindo ajuda, cá estaremos para lhes oferecer as nossas duas. A natural errância deste mundo nunca se sobreporá à Vida em todas as suas manifestações – eis a afirmação central do nosso credo humano. E, como dizia, uma vez mais, Khalil Gibran, “O Arqueiro, assim como ama a flecha que voa, também ama o arco que fica!”.

_____________________________________________

[1] Eugénio de Andrade, in Os amantes sem dinheiro.

[2] Khalil Gibran, O Profeta, AO, Braga, (trad. P. Manuel Simões, SJ), 8ª edição, 2016.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.