Este verão o Papa Francisco publicou uma carta sobre o papel da literatura na educação *. O conteúdo da carta foi já objeto de várias análises, neste e noutros lugares digitais **. Por isso, vou direto à questão que me interessa:
Qual a relação entre esta carta e o mo(vi)mento sinodal que vivemos?
Segue uma tentativa de resposta sistemática, enlaçada em citações desta carta ***:
Abertura a todos. No início da carta, o Papa confessa que tinha pensado escrever só para padres e futuros padres em formação, já que o dia 4 de agosto (dia em que a carta foi tornada pública) é o dia do padroeiro dos padres, o santo Cura d’Ars. Mas, pensando melhor, decidiu abrir o texto “a qualquer cristão” (#1). A abertura a todos é um traço muito forte deste ambiente sinodal que atravessamos.
Educar os educadores. Como toda a educação se dá em ‘cascata’ (uns educam outros), há sempre a grave preocupação de educar quem educa. Para o Papa, “uma assídua frequência à literatura pode tornar os futuros sacerdotes e todos os agentes pastorais mais sensíveis à plena humanidade de Cristo” (#15) e, necessariamente, à ‘carne’ de todo o ser humano. “Não devemos esquecer a “carne” de Jesus Cristo, aquela carne feita de paixões, emoções, sentimentos, histórias concretas, mãos que tocam e que curam, olhares que libertam e que encorajam, de hospitalidade, de perdão, de indignação, de coragem, de intrepidez: numa palavra, de amor” (#14). Há um paralelo entre literatura e misericórdia, entre histórias e compaixão. Relações que podem ser mais aprofundadas.
Educar a sensibilidade. É muito notória hoje a “incapacidade de tantos se comoverem perante Deus, a sua criação e os outros seres humanos” (#22). A mais recente encíclica papal fala da necessidade de uma nova sensibilidade: “Falta o coração!”. Oscilamos quase sempre entre dois polos: num extremo, uma hipersensibilidade quase doentia (manifesta por exemplo em certos programas televisivos) e, no outro, um completo bloqueio emocional (defensivo, perante tanta brutalidade relacional). Vivemos numa desproporção constante entre sentimentos e realidade. A tarefa primeira da evangelização será então “curar e enriquecer a nossa sensibilidade” (#22). Torná-la mais permeável e rica. Tornar-nos seres mais comovidos e atentos. De afetos melhor ordenados, com proporção e realismo; para que não se dê o caso de nos comovermos com coisas secundárias ou ridículas e nos passarem ao lado as realmente importantes. Ora, como escreve o Papa, “quando se lê uma história, graças à visão do autor, cada um imagina, à sua maneira, o choro de uma jovem abandonada, a idosa que cobre o corpo do neto adormecido, a paixão de um pequeno empreendedor que tenta ir para diante apesar das dificuldades, a humilhação de alguém que se sente criticado por todos, o rapaz que encontra no sonho a única saída para a dor de uma vida miserável e violenta” (#36). E, “à medida que sentimos vestígios do nosso mundo interior no meio dessas histórias”, ficamos muito “mais sensíveis às experiências dos outros”, entrando “nas suas profundezas” e vendo a “realidade com os seus olhos”. É então espantoso quando “mergulhamos na existência concreta e interior do vendedor de fruta, da prostituta, da criança que cresce sem pais, da mulher do pedreiro, da idosa que ainda acredita que vai encontrar o seu príncipe.” (#36)
Oscilamos quase sempre entre dois polos: num extremo, uma hipersensibilidade quase doentia (manifesta por exemplo em certos programas televisivos) e, no outro, um completo bloqueio emocional (defensivo, perante tanta brutalidade relacional). Vivemos numa desproporção constante entre sentimentos e realidade. A tarefa primeira da evangelização será então “curar e enriquecer a nossa sensibilidade” (#22). Torná-la mais permeável e rica.
Ultrapassar preconceitos. Envolvo-me nesta narrativa. A poesia é para mim uma bela companhia espiritual. Já os romances, tenho-os desconsiderado. Não me lembro se terei sido de alguma forma orientado nesse sentido (em certas alturas da vida basta uma palavra…), ou se, com algum escrúpulo à mistura, fui fugindo de leituras românticas, usando argumentos sempre muito espirituais e defensivos (#37). Há de facto nos romances uma ambivalência, um exagero emocional, um “excesso de humanidade”, que a minha imaturidade (ainda) tem dificuldade em compatibilizar com a espiritualidade e, sobretudo, com a moralidade. Nunca tinha pensado propriamente nos romances como um “instrumento de sensibilização para a imensa densidade da carne humana” ou como um “telescópio” ou um “laboratório de experiência da vida” (#30). Esta carta foi um refrescamento, um abrir de portas. Este verão perdi receios e, com a benção papal, lancei-me numa leitura omnívora de romances. Li seis de seguida!
Discernir e arriscar. Crime e sexo são ingredientes comuns de qualquer romance. Claro que há romances e romances e será sempre preciso escolher. Neste verão, a minha opção foi quase sempre a de romances históricos. A consciência do meu déficit de cultura histórica é mais fácil de colmatar com essas narrativas ficcionais! Mas haverá outras narrativas românticas, não históricas, que valem a pena: pela análise fina da psicologia das personagens, pelo enredo emocional que explora as paixões, limites e potencialidades da alma humana. Claro que o ‘romântico’ não pode ter nunca a última palavra: desgraçados os “Lord Byrons” desta vida, que idolatram o romantismo e o tornam tudo! Nem tudo, nem nada. Romances e poesia fazem parte da vida; são modos literários a ter em conta, linguagens a considerar. Que não devemos absolutizar, nem ignorar: nelas está “muita carne humana a não esquecer” (#14). Quem tem medo de ser ‘contaminado’, moral e espiritualmente, por histórias com crime e sexo, é melhor não ler o antigo testamento. Não são muitos desses livros um compêndio de literatura “romanceada” ? Poligamia e prostituição no livro do Genesis; adultério e traição no livro dos Reis; voluptuosidade erótica na história da bela Susana no livro de Daniel; sedução e assassínio no livro de Judite; matança sanguinária dos sacerdotes de Baal na história de Elias, entre muitos outros. A história sagrada não é uma narrativa de e para certinhos e puritanos. O antigo testamento diz-me que as imperfeições fazem parte do caminho espiritual. É preciso contar com elas. Aprender com elas e fazer caminho a partir delas, assumindo-as. Mantendo viva uma consciência reta que as identifique cada vez melhor e vá superando, purificando.
Nova literatura sinodal. Ser “literário” significa ser criativo e imaginativo. Como em vários livros do antigo testamento, a verdade não se confunde com exatidão, nem com precisão histórica. E aterramos, de novo, na questão base destas linhas: o que tem o sínodo a ver com a literatura? Tem tudo. Um olhar literário abre horizontes, expande a mente, empatiza com o diferente, aceita o contraponto e arrisca novas formas de relação. Para o anúncio evangélico “o contacto com diferentes estilos literários e gramaticais permitirá sempre aprofundar a polifonia da Revelação, sem a empobrecer ou a reduzir, quer às próprias exigências históricas quer às próprias estruturas mentais” (#10). É também o que se quer do sínodo: a libertação de chavões, de expressões padronizadas e mecânicas. Em cada geração, guardamos o melhor que recebemos mas precisamos também de novas linguagens para expressar o amor eterno de Deus.
A segunda grande assembleia sinodal, terminada há dias no Vaticano, não trouxe, aparentemente, grandes mudanças. Foram sobretudo alterações de estilo. Olhem que não é pouca coisa! O estilo centralizado, opaco e uniforme de muitos ambientes eclesiais tem mesmo de mudar. E quando mudar, muito mais poderá mudar. Acreditamos numa Palavra (não num livro cristalizado!) e a Palavra é viva, adapta-se e permite sentidos múltiplos, entoações e nuances, de acordo com quem a recebe. Mas nós, tendencialmente, cristalizamos muito. Estar aberto a ‘novas literaturas’ não significa ser menos convicto. Significa só isso: estar aberto. Na prática, correm-se riscos, claro. E corre-se também o sério risco de uma compreensão muito mais profunda das pessoas e das suas realidades, não anulando a complexidade. Esse risco vale a pena e é próprio de uma Igreja em saída: linguisticamente em saída! A literatura será instrumental para isso. A alternativa é ficar tolhido e atrofiado, num simplismo vazio e anacrónico do “sempre se disse assim”. Uma abertura madura inclui a disponibilidade para assumir toda a realidade, incluindo a “romântica” e a “poética”, sem perder o nervo central identitário que nos une. E todos aqui saberemos qual é: aquele que vai do Natal do Salvador à Páscoa do Senhor.
Para o anúncio evangélico “o contacto com diferentes estilos literários e gramaticais permitirá sempre aprofundar a polifonia da Revelação, sem a empobrecer ou a reduzir, quer às próprias exigências históricas quer às próprias estruturas mentais” (#10). É também o que se quer do sínodo: a libertação de chavões, de expressões padronizadas e mecânicas. Em cada geração, guardamos o melhor que recebemos mas precisamos também de novas linguagens para expressar o amor eterno de Deus.
Combater obstinações. É muito difícil ver a ‘big picture’ quando estamos obstinados com alguma coisa muito particular. Aquele ponto que absorve todo o nosso espaço mental! Aceita-se a sensibilidade e experiência eclesial de cada um, mas há que relativizar toda a rigidez e teimosia ‘mentalo-espiritual’. E a literatura pode ter aqui um lugar importante: abrindo cabeças! Porque a “leitura abre novos espaços interiores, capazes de evitar o encerramento naquelas poucas ideias obsessivas que nos enredam inexoravelmente” (#2). Acontece-me com frequência – não sei se também vos acontece – fixar-me semanas ou meses a fio numa palavra, numa ideia ou numa história. Falo muito dela e ocupa-me de sobremaneira. A dada altura, alguém ou alguma coisa me faz entender que é tempo de a ‘deitar fora’, ou exorcizar de alguma forma: começa a afunilar-me a visão e a vida, torna-se uma espécie de ídolo, um buraco negro que tudo absorve!
No contexto eclesial, importa “quebrar os ídolos das linguagens autorreferenciais, falsamente autossuficientes, estaticamente convencionais, que por vezes correm o risco de contaminar até o nosso discurso eclesial, aprisionando a liberdade da Palavra” (#42).
Rigidez e visões míopes, fechadas e parcelares, podem até incorrer involuntariamente em heresias, com péssimas consequências para todos. Foi o caso da heresia do marcionismo, logo no século II, que recusava como canónicos os livros do antigo testamento. Eliminava os ‘romances’ e as imperfeições do caminho… procurando um puritanismo angélico imediato, muito distante de “Jesus Cristo feito carne, feito homem, feito história” (#14).
As verdadeiras novidades. As melhores mudanças que este movimento sinodal pode trazer são porventura as mais subtis: novas tonalidades e acentuações, novas reconfigurações e novas formas de atuar. Uma maior abertura a outras “literaturas” de ação eclesial, a “novas linguagens” na vida da Igreja, a uma renovada “poesia” e maior alegria e transparência nas comunidades cristãs. Realidades que começam a germinar, devagar. E não são pouca coisa! Vou-me dando conta de sementes dessas ‘mudanças de estilo’: uma vontade efectiva, e sempre redita, de abertura a todos; uma outra forma de nos querermos relacionar em Igreja, com uma saudável descentralização no que for possível; um empoderamento mais efetivo dos jovens; um desejo de maior participação de todos os batizados; mais espaços para ouvir e maior prioridade à escuta; mesas redondas nas reuniões e encontros, a vários níveis, mimetizando o que se passou no Vaticano; uma maior participação de mulheres em lugares de influência, equilibrando e enriquecendo perspectivas (sem cair no polo oposto do feminismo, doença social tão nociva tal como o machismo); uma maior humildade do clero, que aprende a escutar mais e a impor-se menos, reconquistando uma nova credibilidade; uma gradualidade nas possibilidades de pertença e vivência comunitária da fé, dando espaço a todos; e uma interioridade orante mais verdadeira, com expressão comunitária e missionária. Aliás, a primeira grande santa dos tempos modernos, santa Teresinha do Menino Jesus (a primeira de quem há fotografias), deu o mote para um estilo de santidade contemporâneo mais íntimo, nas pequenas coisas, menos fausto e mais interioridade, menos “massas” e, ao mesmo tempo, uma grande preocupação missionária, que lhe valeu ser a padroeira das missões. Almejamos uma visão eclesial toda ela mais orgânica, participada e missionária. Como não ver em tudo isto um sentido sinodal ‘literário’, expansivo, aberto, criativo!
Romances e matrimónio. Oxalá também possa surgir deste mo(vi)mento sinodal uma maior valorização do matrimónio e da sexualidade conjugal. Os romances podem ter aqui um papel importante, sinalizando as múltiplas nuances e complexidades da intimidade sexuada; dos prazeres e das imperfeições que são caminho, e das misericórdias necessárias. O celibato bem vivido ativa uma incrível força espiritual, manifesta numa fecunda ação pastoral. Uma vida conjugal realizada também liberta uma grande força de espírito, que pode dar muitíssimos frutos. Só que essa “energia” fica muitas vezes refém de uma sexualidade mal vivida e integrada. E não falo só do (incontornável) tema dos métodos naturais. Estudos recentes mostram que o mundo ansioso e apressado em que vivemos promove uma vivência sexual conjugal deficitária. São impossíveis de contabilizar os prejuízos espirituais que daí resultam. O fundador do movimento de Igreja em que participo via no amor romântico uma proteção contra o amor animalesco em que as relações íntimas conjugais também se podem tornar. O amor erótico e romântico dá a beleza e dignidade ao amor sexual e protegem-no da bestialidade. E falta muito romance, na juventude e não só, faltam namoros autênticos, presenciais e graduais. Faltam casamentos felizes que irradiem amor e harmonia. A sexualidade, o namoro, e a vida natural e espiritual dos casados são hoje temas complexos, que não têm sido suficientemente considerados pelos cristãos. A literatura pode ajudar a abrir espaço para pensar e agir melhor nisto.
Literatura e educação. Ler é hoje tão difícil quanto necessário. Requer desejo e capacidade de auto educação. E também ensino e instrução. Ser professor, ou outro tipo de educador, é, neste tempo, uma missão complexa, a precisar de ser mais valorizada e acarinhada, também no meio eclesial. Começando até em casa, pelos principais educadores, que são os pais. São Tomás de Aquino lembrava que o vínculo matrimonial gera um sacerdócio conjugal e familiar que ’empodera’ com graças especiais os pais em favor dos filhos: graças de estado para abençoar, guiar, conduzir e aconselhar os filhos e gerir a casa. À semelhança do ponto anterior (romances e matrimónio), também não quero, obstinadamente, insistir neste ponto isolado, mas oxalá os educadores fossem mais considerados neste movimento sinodal e nos seus consequentes grupos de trabalho. A missão de educar podia ser ‘oficializada’ como um dos novos ministérios laicais que venham a ser propostos no próximo ano.
Referências:
* A carta pode ser encontrada aqui
** Por exemplo aqui: https://pontosj.pt/especial/redespertar-o-amor-pela-leitura/
e aqui:
https://setemargens.com/uma-carta-do-papa-1-literatura-para-fins-beatos-nem-pensar/?doing_wp_cron=1726235063.5757880210876464843750
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A Indicação dos respectivos parágrafos está entre parênteses: p.e. parágrafo 44 (#44).
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.